segunda-feira, 9 de julho de 2012


Amor e a transferência

A transferência é um conceito fundamental em psicanálise. Algo que se dá numa análise: como motor e como resistência.  Por experiência própria a análise é um processo libertador, mas também bastante doloroso, que é sustentado pela transferência. É importante que o analista sustente um lugar que é dado pelo analisando, mas que não se iluda, com esse “poder ou não poder” que o analisando lhe dá. E não responda àquilo que o analisando lhe demanda, até porque ele não o tem, pois amar é dar aquilo que não se tem.  

Quando o sujeito procura uma análise, na realidade procura um objeto que o satisfaça que o complete em sua falta estrutural, entretanto este objeto foi perdido desde sempre. Nesta busca há movimento entre os significantes. O desejo é sempre desejo de desejar.
Na análise o sujeito encontra uma falta radical, desejo do nada. A partir da transferência, apreende-se isso amando. Como não encontra uma resposta imediata para o que procura, vai buscando um sentido e neste percurso o analisante encontra, na verdade um destinatário para o seu sintoma: o analista
Anna O e Dr. Breuer

Breuer descobriu, em 1880, que ele havia aliviado os sintomas de depressão e hipocondria (histeria) de uma paciente, Bertha Pappenheim, depois de induzi-la a recordar experiências traumatizantes sofridas por ela na infância. Para isso Breuer fez uso da hipnose e de um método novo, a terapia de conversa. p

Por dois anos, o caso de Bertha fascinou Breuer e, a partir de certo momento, a própria Bertha o seduziu. Assim, além de inventar a terapia de conversa, Breuer descobriu também o principal problema desse método: os fenômenos que depois Sigmund Freud chamaria Transferência e Contra-transferência.

Os problemas de Bertha Pappenheim, de 21 anos, - na ficha médica "Anna O" -, eram depressão e nervosismo, com um quadro de hipocondria com os mais diversos sintomas (uma condição na época denominado "histeria"). Em certas ocasiões se acreditava paralítica, em outras acreditava estar impossibilitada de deglutir e por algum tempo não conseguia comer ou beber água, mesmo estando com fome e sede. Em outras ocasiões tinha distúrbios visuais, paralisia das extremidades e contraturas musculares, perda de sensibilidade na pele, tosse nervosa, de modo que sua personalidade ora era a de uma deficiente, ora a de uma pessoa normal. Por vezes sentia-se incapaz de falar seu próprio idioma, o alemão, e recorria ao Francês ou Inglês para se comunicar. Breuer submeteu-a a hipnose e ela relatou casos de sua infância, essa recordação fazia que se sentisse bem após o transe hipnótico.

Após estimular a paciente a conversar sem rodeios, aos poucos ficou claro para Breuer que a hipnose poderia ser dispensada, caso o médico conduzisse a conversa habilmente, no sentido de provocar as recordações mais difíceis de serem trazidas à consciência. Aos poucos entendeu que os sintomas eram conexões simbólicas com recordações dolorosas – relacionadas à morte de seu pai – as quais ela revelou durante a terapia.

O interesse de Breuer por Bertha despertou a atenção de sua esposa e a crise matrimonial que isto deflagrou levou Breuer a interromper o relacionamento. Bertha então forçou um encontro íntimo por meio de um artifício: enviou um chamado ao terapeuta dizendo-se grávida e em estado de parto. Breuer atendeu ao falso apelo, mas com a decisão de se afastar dela definitivamente. No dia seguinte embarcou com sua mulher para uma viagem destinada a recondicionar o clima de afeição em sua vida conjugal.

Tomado de um horror, Breuer foge e abandona sua paciente a um colega.  Anna O. passa meses numa clínica para recuperar sua saúde. Freud aproximou-se de Anna O. e a partir deste ponto constrói o conceito de transferência.

Qual a origem do amor de Anna O. por Dr. Breuer?

Segundo Freud o  amor daquela moça era amor de transferência. Freud percebe um sentido nas narrativas de suas pacientes, uma novela familiar, onde circulam os elementos: procriação/sexo/morte/amor. E por conta destes elementos recorrentes recorre ao Édipo.

Em seu artigo sobre os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Freud já nos advertia bastante precocemente da íntima conexão entre os destinos da libido recalcada, presa a fantasias inconscientes, que não encontram outra expressão além dos sintomas.

“A psicanálise não encontra dificuldades em mostrar a pessoas desta espécie que elas estão amando, no sentido ordinário da palavra, estes seus parentes consangüíneos, pois, com o auxílio de seus sintomas e outras manifestações de sua doença, ela pesquisa seus pensamentos conscientes. Nos casos em que alguém que antes fora sadio, adoece após uma experiência infeliz de amor, é também possível mostrar com certeza que o mecanismo da doença consiste num retorno da sua libido para aqueles a quem preferia na infância”.

Este protótipo da experiência que será reeditada na transferência, sob a forma do amor de transferência. Demonstrando a dificuldade do neurótico no abandono do amor incestuoso, e, portanto toda a  sua dificuldade em relação à castração.

É essencial, por outro lado, que o analista suporte todas as projeções incestuosas que o amor de transferência lança sobre ele, renunciando ao gozo de amor que o analisando lhe oferece.

Lacan recoloca a questão da transferência da seguinte maneira: Trata-se das Imagos maternas/paternas afetados pela Presença Real do analista. Numa análise, as posições amado/amante conformam-se numa báscula dialética. Ao analista cabe, enquanto a função de suporte dessa escuta, não se confundir com o agalma a ele atribuído pelo analisante, Não haverá jamais coincidência entre o que falta a um e aquilo que possa existir de oculto no outro.

 Amar é dar aquilo que não se tem, pois o amor vela a falta constitutiva, sendo também a única possibilidade de expressividade do desejo.

O desejo é algo constitutivo no vértice entre a necessidade e o amor. A partir do ponto que essa necessidade se transforma em demanda por sua insuficiência  contingente e esse amor é alienado por essa necessidade. E a linguagem se constitui pela inadequação e a falta do objeto. Jamais haverá um objeto que lhe satisfaça, ou que lhe corresponda, por isso é indestrutível.

Como se articulam o desejo e a linguagem na transferência?

Para existir o amado deve existir o amante. O desejo é uma falta, que se movimenta, a partir do sentido dado S2, criando atributos S1, sempre de maneira retroativa.

S1-S2-Sq

       Quanto mais se fala, à procura de sentido, mais se ama/odeia aquele com quem se fala. Instalada a transferência, o analista participa do sintoma do paciente. É o que Lacan denomina o Sujeito-Suposto-Saber. O analisante acredita não apenas que o analista tem um saber, mas que ele está na origem do seu sofrimento.

       Ao analista cabe aceitar este lugar de amado/odiado que o analisante lhe atribui para que uma análise possa se desenvolver. Porém, sem jamais esquecer a origem deste amor, expressão sintomática, que está diretamente ligada a fantasias inconscientes. Dr. Breuer acreditou de fato neste amor, e fugiu...

       E várias são as maneiras do analista fazer uso deste poder que lhe é conferido, quer seja ao acreditar que possui todo o saber que lhe é depositado pelo analisando, quer seja ainda colocando-se numa posição de superioridade, deixando todo o sofrimento, desgraça e infortúnio do lado do analisando, como se a análise não fosse um processo que acontece no “entre dois” da relação analítica.

Se o analista acreditar que possui todo o saber nele depositado, acaba ensurdecendo para toda nova fala do analisando, o que não deve significar ser ignorante em relação à teoria que dá suporte à sua prática. Já o “não saber” do neurótico, por sua vez, é o desconhecimento que ele porta sobre seu sofrimento, é o que experimenta em si mesmo como a estranheza do seu sintoma.

O efeito terapêutico de uma análise está atrelado à transferência, que utiliza a linguagem como instrumento. Graças à transferência, o bem mais precioso de uma análise, entrelaçada à interpretação, analisando e analista juntos trilham o percurso de uma análise.
Referências:


FREUD S. Sobre o início do tratamento (1913). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD S. A dinâmica da transferência  (1915). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD S. Observações sobre o amor transferencial   (1914). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus, 1994.


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