sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Minha leitura: S. Freud. Psicanálise e Psiquiatria. CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A PSICANÁLISE (1916 - 1917).

PAULA ADRIANA NEVES COUTO
PSICANALISTA
paulaadriana.couto@gmail.com
tel: (11) 9 7656-7297
Consultório: Av. Leôncio de Magalhães, 1138 - Jdim São Paulo
Próximo  ao Metrô Jdim São Paulo


Freud tinha o desejo de expor e compartilhar suas ideias, e entre as várias obras que escreveu para esse fim se destacam as Conferências introdutórias à psicanálise, publicadas em 1916-1917. Durante muitos anos deu séries de conferências na Universidade de Viena, onde era “professor extraordinário”, e resolveu publicar em livro a última dessas séries. 

Essas conferências são divididas em três partes. Após capturar a atenção do leitor com a explicação psicanalítica para fenômenos insólitos, mas comuns a todas as pessoas, que são os atos falhos (na primeira parte) e os sonhos (na segunda), Freud expõe sua abordagem das neuroses e apresenta a terapia psicanalítica (terceira parte). 

Primeira parte: Os atos falhos

Segunda parte: Os sonhos

Terceira parte: Teoria geral das neuroses - Iniciarei minhas leituras pela Conferência que aborda as neurose.
Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria:

“Não desejo suscitar convicção; desejo estimular o pensamento e derrubar preconceitos. Se, em decorrência da falta de conhecimento do material, os senhores não estão em condições de emitir um julgamento, não deveriam nem acreditar, nem rejeitar. Deveriam ouvir atentamente e permitir que atue nos senhores aquilo que lhes digo. Não é tão fácil adquirir convicções; ou se estas são alcançadas facilmente,  logo se revelam sem valor e incapazes de resistência. A única pessoa que tem o direito de possuir uma convicção é alguém que, como eu, tenha trabalhado, por muitos anos, o mesmo material e que assim agindo, tenha tido, por si próprio, as mesmas  e surpreendentes experiências. De que servem então, na esfera do intelecto  essas convicções súbitas essas conversões-relâmpago, essas rejeições instantâneas? Não está claro que o ‘coup de foudre’, amor a primeira vista, deriva de esfera bem diferente, da esfera das emoções? Nem mesmo dos nossos pacientes exigimos  que devem convencer-se da verdade da psicanálise, no tratamento, ou aderir a ela. Tal atitude frequentemente levanta nossas suspeitas. A atitude que neles achamos mais desejável é a de um benévolo ceticismo.     Assim, também os senhores devem esforçar-se por deixar que os pontos de vista psicanalíticos amadureçam tranquilamente nos senhores, junto com a visão popular ou psiquiátrica, até surgir a oportunidade de ambas se influenciarem reciprocamente, de uma competir com a outra e de se aliarem no rumo de uma conclusão.”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

O primeiro capítulo da conferência XVI é justamente uma separação entre psicanálise e psiquiatria.  Qual a necessidade de diferenciar a psicanálise e psiquiatria justamente quando Freud irá esmiuçar a neurose? Talvez porque a neurose esteja na vida cotidiana, em nossas palavras óbvias e em nossas repetições e o  sintoma como uma representação de todas essas coisas que precisam ser ditas.  É difícil ouvir os pacientes com suas obviedades e nos detalhes do dia a dia. Em relação à neurose existem diferenças fundamentais entre psicanálise e psiquiatria: na constituição da própria neurose, naquilo que é considerado sintoma e principalmente  no manejo com os pacientes.

Freud construiu uma teoria calcado no seu  trabalho como clínico: “Por outro lado, não devem, de modo algum, supor que aquilo que lhes apresento  como conceito psicanalítico seja um sistema especulativo. Pelo contrário é empírico  - seja uma expressão direta  das observações, seja um processo consistente em trabalha-las exaustivamente . Se esse trabalho exaustivo foi executado de uma maneira adequada e fundamentada, isto se verá no decorrer de futuros progressos da ciência, e realmente posso afirmar, sem jactância , após um período de quase vinte e cinco anos e tendo atingido uma idade razoavelmente avançada (60 anos), que essas observações são o resultado de trabalho especialmente difícil, intensivo e aprofundado. Frequentemente tive a impressão de que nossos opositores relutavam em levar  em conta essas origem de nossas teses, como se pensassem que se tratava apenas de noções determinadas subjetivamente, às quais qualquer um podia opor outras, de sua própria escolha. Essa conduta dos nossos opositores não me é completamente compreensível, Talvez se deva ao fato de que, como médico, habitualmente se tem tão pouco contato com pacientes neuróticos e se presta tão pouca atenção ao que dizem esses pacientes que não se pode . imaginar a possibilidade de que se possa derivar algo de valioso de suas comunicações. – Isto é, a possibilidade de efetuar acuradas observações a respeito delas.” .”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

Freud construiu sua obra aos olhos de seus leitores, não aguardou estar pronto para apresentar a psicanálise, assumiu o risco de tempos em tempos revisá-la, construir, desconstruir e quando necessário reconstruí-la. “Também posso declarar que, no transcorrer do meu trabalho tenho modificado minhas opiniões em alguns pontos importantes  tenho-as alterado e substituído por outras , novas – e, em todas essas ocasiões, naturalmente, tornei isso público. E o resultado dessa sinceridade? Algumas pessoas jamais tomaram conhecimento de quaisquer de minhas autocorreções, e continuam, até hoje, a criticar-me por hipóteses que, para mim, há muito cessaram de ter o mesmo significado. Outros me reprovam justamente por estas modificações e, por causa delas, consideram-se indigno de confiança.  (...).”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

Até este momento  a principal modificação de Freud em relação a teoria psicanalítica foi o abandono da ideia de que a etiologia de neurose seria um trauma concreto (teoria da sedução). Ao invés disso, Freud instituiu a importância das  fantasias , as pulsões e a sexualidade na etiologia das neuroses.  Esta mudança é fundamental a compreensão e estudo da psicanálise. 

AÇÃO SINTOMATICA NAS NEUROSES:

ACASO – Será que existe algo que ocorre ao acaso na neurose? Ou qualquer ato é intencional/tem causa? Todo ato equivocado é um sintoma? Todo sintoma é uma doença? Como o psiquiatra percebe esta cena? E o psicanalista?
Freud exemplifica a questão do acaso e intenção através de um paciente que ao se deslocar da sala de espera à sala de atendimento se equivoca e esquece  a porta aberta. Tendo que o analista solicitar ao paciente o fechamento da porta. Geralmente as salas de atendimento têm uma acústica bem cuidada, onde manter a porta fechada é prioridade. Será que o paciente mesmo sem querer teve a intenção de deixar a porta aberta? Sendo isso, qual essa intenção? Ou foi um simples equívoco?
Será que para o psiquiatra  esse equívoco é tido como um sinal? Ou simplesmente obra do acaso?
Ao psicanalista quer dizer algo do sujeito.  “Assim a omissão do paciente não é determinada pelo acaso ou por falta de propósito; e na realidade, ela não é destituída de importância, pois conforme verificaremos, elucida a atitude do recém-chegado para com o médico.” .”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

Esse equívoco quer dizer algo para o psicanalista: decerto tem um sentido, motivo, ou intenção,  mas também é algo que o paciente não sabe de si, mas que é particular e Inconsciente. Geralmente para o psiquiatra esse ato é um simples equívoco.
RECORTE DE UMA SITUAÇÃO VIVIDA POR UM PACIENTE (EXEMPLO FORMULADO POR FREUD):

Quem solicitou o atendimento: Genro – jovem oficial de regresso a casa em período de breve licença. Paciente: mulher de 53 anos que apesar de viver um momento feliz encontrava-se amargurada por conta de uma ideia absurda.
Essa mulher vivia um casamento feliz de trinta anos. Ela e o marido casaram-se por amor, suas duas filhas também estavam casadas. O marido era um homem bom, fiel e próspero e ainda mantinha-se trabalhando.
Determinado dia, essa mulher recebe uma carta anônima, a qual acusava seu excelente marido de infidelidade com uma determinada jovem. Apesar de acreditar que essa situação seria  absurda e mentirosa,  acreditou também no teor da carta e adoece de ciúme. A mulher tem convicções opostas  (Ideias contraditórias, mas que aparentemente convivem conjuntamente). Como isso é possível?

CONSTRUÇÃO DA CENA:            
Essa mulher tinha uma empregada doméstica, com  a qual conversava bastante e contava suas intimidades. Essa empregada por sua vez tinha inimizade com uma jovem, simplesmente porque essa outra havia  prosperado na vida, diferente dela que mantivera na mesma situação, empregada doméstica.
Um dia patroa e empregada estavam conversando sobre a infidelidade de outro casal conhecido, quando  a futura paciente de Freud,  diz a sua empregada que o pior infortúnio que poderia acontecer em sua vida seria a traição do marido.
No dia seguinte a patroa  recebe uma carta anônima, onde o marido dela é acusado de infidelidade justamente com a jovem odiada pela empregada.  A partir disso, a patroa ligou os fatos   demitindo a  empregada, mantendo a jovem acusada de traição trabalhando. Entretanto a mulher mesmo que supostamente acreditando no marido, por vezes acreditava na traição, e se via corroída de ciúmes daquela jovem. Geralmente isso ocorria quando a encontrava na rua, ou alguém falava o nome dela.
Ao que parece, a mulher acreditou na traição do marido. Mesmo sabendo que isso seria impossível. Frase e situação ambígua: como se acredita e se sofre por algo que se  sabe que é impossível? Parece que essa mulher construiu uma cena para sofrer.
Diante deste recorte Freud se questiona: Qual a atitude que um psiquiatra adotaria neste caso? No caso do paciente que deixa a porta aberta, ao psiquiatra isso seria obra do acaso, sem intenção e sem interesse psicológico. No caso da mulher ciumenta esse procedimento não poderia ser mantido porque há sofrimento dos envolvidos.
O psiquiatra começaria a caracterizar o sintoma partindo de algum aspecto essencial. (A medicina parte do sintoma):
A mulher atormentada por ciúme, a ideia em si não é absurda, pois existem muitos homens que traem. Sendo assim, isso não caracteriza o aspecto essencial de uma doença psíquica, porque este tormento poderia ser vivido de fato.
 Existe outro aspecto importante que talvez possa ser essencial: essa mulher  quando recebeu a carta anônima sugerindo a traição do marido, o que ela faz? Manda a empregada embora e mantém a jovem trabalhando na fábrica, enfim, demonstrando que sabe da invenção. Entretanto continua sofrendo com esta estória inventada.
Delírio de ciúme: “Ideias desse tipo, inacessíveis a argumentos lógicos baseados na realidade, são, segundo o consenso geral, descritas como delírios. A boa senhora  portanto, estava sofrendo de delírios de ciúme. Este é, sem dúvida, o aspecto essencial deste caso mórbido.“ .”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

Qual a leitura do psiquiatra diante do delírio? O delírio não cessa mediante referências da realidade. O delírio não surgiu da realidade. O que é o delírio? O delírio pode ter diversos conteúdos, por que neste caso o delírio foi de ciúme?
Frente a essas questões o psiquiatra investigaria a história familiar da paciente buscando antecedentes do distúrbio psíquico em outros familiares (predisposição hereditariedade). A partir da hipótese da transmissão hereditária: Será que esse problema (delírio) surgiria de qualquer maneira nesta mulher? Ou seria um capricho, ou “birra”? Ou ainda, caso não houvesse antecedentes familiares da doença, ocorreria o delírio? Enfim, o psiquiatra frente a um caso como este se contenta em fornecer diagnóstico e prognóstico incerto. Isso daria conta de sanar o mal estar desta paciente? Qual o manejo do psiquiatra diante do delírio?
“Pode a psicanálise ir além, em um caso destes? Sim, ela realmente pode. Espero conseguir mostrar-lhes que, mesmo num caso assim, tão difícil de abordar, ela pode descobrir algo que possibilite uma primeira compreensão. E antes de mais nada, eu atrairia a atenção dos senhores para o detalhe notório  de que a própria paciente positivamente provocou a carta anônima, tendo, agora, dado apoio a seu delírio, ao informar à empregada intrigante, no dia anterior, que lhe causaria a maior infelicidade se seu marido tivesse um caso amoroso com uma jovem.” .”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)
  1. A patroa incute na empregada à ideia de enviar a carta anônima.
  2. A ideia do delírio já estava presente independente da carta anônima. Na forma de medo de ser traída. Freud ainda coloca: medo ou desejo de ser traída ou trair?

Freud acrescenta outras indicações após duas sessões analíticas:
“A paciente, na realidade, conduziu-se de maneira bastante não cooperativa quando, após haver contado sua história. Perguntei-lhe por seus outros pensamentos, ideias e lembranças. Disse que não lhe ocorria nada à mente, que já me havia dito tudo; e depois de duas sessões,  a tentativa de tratamento comigo realmente teve que ser interrompida, pois declarou que já se sentia bem e estava segura de que a ideia patológica não retornaria. Naturalmente ela disse isto apenas devido à sua resistência e ao receio da continuação da análise. Não obstante, durante essas duas sessões, fez algumas observações que permitiram, e realmente exigiram, uma interpretação especial; e essa interpretação lançou viva luz sobre a gênese de seu delírio de ciúme.” .”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

Essa mulher estava apaixonada por um homem jovem, o  genro que a trouxe para análise. Ela mesma não tinha noção de que estava apaixonada por este homem, essa afeição se disfarçava pelo fato de serem familiares. A possibilidade de sentir ou viver esta paixão era inadmissível a consciência, permanecendo inconsciente, mas  pressionando á advir. 
O alívio encontrado surgiu na construção do delírio de ciúme (deslocamento): Ao invés dela viver está paixão com um homem mais jovem, o seu marido a trai com uma jovem. De alguma maneira, pelo menos do ponto de vista moral ela resolve sua dor.  Não só ela é infiel, mas seu marido também é.

“A fantasia da infidelidade de seu esposo agiu assim como uma compressa fria em sua ferida ardente. O amor que ela própria abrigava não se lhe tornara consciente; porém, seu reflexo especular, que lhe deu tal vantagem, agora se tornou consciente como uma obsessão e um delírio.” . S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

“Naturalmente nenhum argumento em contrário podia surtir qualquer efeito, pois o argumento era dirigido contra a imagem especular, e não contra a imagem original que deu à outra sua força e que permanecia oculta, inviolável, no inconsciente.” S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)

Baseado nas indicações acima é possível chegar a algumas constatações:

O delírio tem um sentido e motivos fundamentais. Ajustou-se ao contexto de uma experiência emocional  da paciente.
O delírio tem serventia – como reação a um processo psíquico inconsciente. Esse delírio é uma espécie de consolação, de alguma forma foi almejado.   Entretanto Justamente por conta dos aspectos  inconscientes,  o uso da  lógica, de dados da realidade não causam efeitos.
No caso desta paciente, o fato de ser um delírio de ciúmes foi determinado pela experiência que esta por trás da doença. A própria paixão pelo  genro, as triangulações envolvidas e a maneira como essa mulher lida com seus afetos, investimentos e fantasias são resultados da neurose.
Em relação aos dois saberes: existe algum sinal de contradição ou oposição  entre a psiquiatria e a psicanálise? Saberes diferentes, mas que aparentemente não se opõe.
Segundo Freud: “A psiquiatria não emprega os métodos técnicos da psicanálise; toca superficialmente qualquer inferência acerca do conteúdo do delírio, e ao apontar para a hereditariedade, dá-nos uma etiologia geral e remota, em vez de indicar, primeiro, as causas mais especiais e próximas. Mas existe uma contradição uma oposição nisso? Não é o caso de uma suplementar a outra? O fator hereditário contradiz a importância da experiência? Ambas as coisas não se combinam da maneira mais efetiva? Os senhores não existir nada na natureza do trabalho psiquiátrico que possa opor-se à investigação psicanalítica. O que se opõe à psicanálise não é a psiquiatria, mas os psiquiatras. A psicanálise relaciona-se com a psiquiatria aproximadamente como a histologia se relaciona com a anatomia: uma estuda as formas externas dos órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e células. Não é fácil imaginar uma contradição entre essas duas espécies de estudo, sendo um a continuação do outro. Atualmente, como sabem, a anatomia é considerada por nós como fundamento da medicina científica. Houve, todavia, época em que era tão proibido dissecar um cadáver humano, a fim de descobrir a estrutura interna do corpo, como hoje (1916) parece ser o exercício da psicanálise, esclarecer acerca do mecanismo interno da mente. É de se esperar que, em futuro não muito distante, perceber-se-á que uma psiquiatria cientificamente fundamentada não será possível sem um sólido conhecimento dos processos inconscientes profundos da vida psíquica.” .”  S. Freud. Conferências  Introdutórias  sobre  a Psicanálise. Conferência XVI – Psicanálise e Psiquiatria (1917)