quinta-feira, 19 de maio de 2016

Minha leitura: Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais


CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A PSICANÁLISE

Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais
O que é a libido? É um afeto ou energia?
Segundo o dicionário de psicanálise o termo libido tem origem latina  e significa “desejo” “vontade”, “aspiração”. Tal como Freud faz uso dele, designa: “A manifestação dinâmica, na vida psíquica, da pulsão sexual. Trata-se da energia dessas pulsões que tem a ver com tudo o que se pode compreender sob o nome de amor.” R. Chemama & B. Vandermersch
A partir dessa definição é perceptível que amor e desejo se articulam na sexualidade humana. Sendo libido, a  energia utilizada nos investimentos em direção aos objetos, sob o domínio da  pulsão sexual.
Para falar de libido Freud retoma os temas: perversão e sexualidade infantil.
Antes da psicanálise a sexualidade humana desabrochava somente na puberdade. E era  algo relacionado aos genitais, e que tinha como meta a reprodução. Freud transformou o termo sexualidade quando ampliou  o conceito: retirando as perversões do campo moral e afirmando que a sexualidade infantil como perversa e polimorfa. A sexualidade humana não esta restrita aos órgãos genitais visando à reprodução. 
A ideia da perversão em Freud – O prazer sexual não advém exclusivamente dos órgãos genitais. Outros órgãos/partes do corpo ao serem investidos podem satisfazer sexualmente. Toda perversão nega o objetivo da reprodução. O termo perversão apesar de moralmente trazer certo tom pejorativo, nada mais é que a sexualidade humana vivida de maneira singular. Do ponto de vista da satisfação sexual todo humano é perverso?
“Existe algo mais que devo acrescentar a fim de completar nosso ponto de vista referente às perversões sexuais. Por mais infames que possam ser, por mais nítido que se faça o contraste com a atividade sexual normal, uma reflexão tranquila mostrará que um ou outro traço de perversão raramente está ausente da vida sexual das pessoas normais. Pode-se alegar que até mesmo um beijo seria considerado ato pervertido, de vez que consiste na junção de duas zonas erógenas orais em vez de dois genitais.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
A sexualidade infantil –  O bebê é investido de libido  pela mãe ou cuidador, em cada parte do corpo, que são denominadas as zonas erógenas. O bebê é acarinhado por esse outro que o banha de afetos e desejo. À medida que é investido o bebê tem sensações de prazer-desprazer no corpo. As pulsões no bebê funcionam de maneira polimorfa, seguem seus próprios rumos na busca de prazer. A sexualidade vivida pelo adulto, de maneira perversa ou não, advém do infantil, alias a percepção da sexualidade infantil perversa e polimorfa surgiu a partir da análise de  adultos e de suas lembranças, ou no caso dos neuróticos, dos sintomas que são substitutos desta satisfação do prazer no órgão, vivido no infantil,  e que em determinado momento é recalcada.
A sexualidade infantil engloba mais que a satisfação do prazer no órgão. Os elementos sociais: a escolha de objetos, ciúmes infantil, uma preferência carinhosa por alguém, a escolha por um dos sexos, demonstram o surgimento precoce da sexualidade infantil. Freud quando fala de sexualidade engloba três elementos: o Sexo (prazer no corpo), o amor e o desejo.
O nosso corpo e nossas funções sexuais (sexo, amor e desejo) são construídas a partir de  fases sucessivas efêmeras e que não se parecem entre si.  Cada uma dessas fases é independente. O  ponto crítico desta construção é a subordinação de todas as pulsões à primazia dos genitais, e a sujeição da sexualidade à reprodução. 
Freud organiza a sexualidade em dois momentos: pré-genital e genital. O primeiro momento denomina como “uma espécie de organização frouxa.”No período genital o falo entra em jogo primeiramente para só depois surgir a questão das diferenças anatômicas entre os sexos.
As fases oral, anal, fálica e o período de latência se diferenciam pela parte do corpo investida e a pulsão dominante. O período de latência é um momento particular. A partir destas fases surge a pergunta: em que momento o auto erotismo entra em jogo?
FASES:
Fase Oral: Estádio mais precoce e primitivo. A boca e a sucção desempenham importantes papeis.
Fase Anal: Coincide com o período em que a criança pequena está deixando as fraldas. A partir do “pedido”  da mãe/cuidador a criança deixa(aprendizado) de utilizar as fraldas. Em jogo neste momento as pulsões sádico anais.
Ainda não há contraste entre masculino e feminino. Há entre ativo e passivo que segundo Freud são os  precursores da polaridade sexual. Como funcionam essas polaridades? Passivo em relação ao que? Aos objetos? Ao corpo do próprio? Essa polaridade ativa e passiva está relacionada aquilo que é supostamente dominante/dominado/se faz dominar. Olhar/ser olhado/se fazer olhado?
“O que nos apresenta como masculino, nas atividades dessa fase, quando o consideramos do ponto de vista da fase genital, vem a ser a expressão de um instinto de domínio que facilmente pode transformar em crueldade. As tendências que visam a um fim passivo vinculam-se a zona erógena do orifício anal, que é muito importante nesse período. As pulsões de olhar e de adquirir conhecimento (pulsão escopofílica e epistemológica) estão funcionando poderosamente; os genitais realmente desempenham seu papel na vida sexual apenas como órgãos de excreção da urina.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
“As pulsões componentes parciais desta fase não existem sem objeto, mas esses objetos não convergem necessariamente num único objeto.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
Fase fálica:  Início primazia fálica, posteriormente a criança vive conflito edipiano , castração  e recalque (Neurótico).
Período de latência – 6 a 8 anos.  Parada e um retrocesso no desenvolvimento sexual. “A maior parte das experiências e dos impulsos psíquicos anteriores ao início do período de latência agora sucumbe a amnésia infantil – o esquecimento que nos oculta nossa primeira juventude e nos torna estranhos a ela.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
O esquecimento é resultado do recalque.
A relação entre as pulsões parciais e os objetos:
Primeiro momento: o bebê é satisfeito de alimento e afeto. Segundo momento: Após ser satisfeito as pulsões voltam-se ao próprio corpo buscando a satisfação. (auto erotismo). Em seguida o auto erotismo é abandonado e o bebê se volta aos objetos externos. A imagem de corpo é formada a partir justamente destes investimentos. Primeiramente objeto de satisfação é o seio materno, a mãe como objeto de amor/desejo só entra em jogo no momento do Complexo de Édipo. Parece que há um tempo que separa o seio como objeto e a mãe como objeto.  Minha dúvida: há um tempo em que ainda não ocorreu separação, então o seio sendo parte do corpo do bebê?
Na época em que a mãe se torna o objeto de amor da criança, nesta o trabalho psíquico do recalque já começou, trabalho que consiste em parte dos fins sexuais subtrair-se ao conhecimento consciente. A essa escolha que a criança faz, ao tornar sua mãe o primeiro objeto de seu amor vincula-se tudo aquilo que sob o nome de “Complexo de Édipo”, veio a ter tanta importância na explicação psicanalítica das neuroses e tem tido uma parte não menor, talvez, na resistência à psicanálise.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
“A lenda grega do rei Édipo que é fadado pelo destino a matar seu pai e desposar sua mãe, que fez todo o possível para escapar a decisão do oráculo e puniu-se a si próprio cegando-se ao saber que, apesar de tudo havia sem querer cometido ambos os crimes.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
“No decorrer do diálogo, Jocasta, a iludida mãe e esposa, declara-se contrária à continuação da investigação. Apela para o fato de que muitas pessoas sonharam com dormir com a própria mãe, mas que os sonhos devem ser menosprezados. Não menosprezamos os sonhos – muito menos os sonhos típicos que muitas pessoas sonham; e não duvidamos que o sonho a que Jocasta se referia, tem íntima conexão com o estranho e terrível conteúdo da lenda.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
A escolha de objeto feita pela criança é anterior ao período de latência. Freud, neste momento, ainda descreve o Complexo de Édipo nas meninas e nos meninos como semelhantes. Sendo que o protótipo é o Complexo de Édipo nos meninos. Nas meninas, mãe e pai inverteriam suas posições como objeto.
No decorrer do Complexo de Édipo o amor, ódio e desejo em relação às figuras parentais estão atuando de maneira intensa. Ao que parece, esses afetos atuam concomitantemente de maneira por vezes ambivalentes, mas sem causar conflitos, num arranjo entre as figuras parentais e a criança. Entretanto quando entra em cena outra criança esse arranjo se desarticula e surgem conflitos.  Freud cita um exemplo sobre isso: “Uma criança que tenha sido posta em segundo lugar pelo nascimento de um irmão ou irmã, e que agora, pela primeira vez, é quase isolada de sua mãe, não perdoa a esta com facilidade, sua perda de lugar; sentimentos, que, em um adulto, seriam descritos como de intenso ressentimento, surgem na criança e frequentemente constituem a base de permanentes desavenças.” Há afetos intensos, ambivalentes  e concomitantes no decorrer do Complexo de Édipo, no “arranjo” entre pai, mãe e criança.  Por que ocorre certo “desarranjo” quando “outros” entram ou tentam entrar neste trio? S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
Como foi visto no decorrer do Complexo de Édipo os afetos (amor, ódio e desejo) são vividos de forma intensa, e estes não são recalcados como os representantes da pulsão. O que ocorrem com esses afetos? O período de latência marcaria o fim do Complexo de Édipo, o recalque e o Complexo de Castração?
Freud cita o texto “Totem e tabu” (1912-1913) quando aborda as proibições do incesto e o parricídio, a presença desses desejos no decorrer do Complexo de Édipo, e a ação do recalque ao retirar esses conteúdos ideacionais da consciência tornando-as inconscientes. No inconsciente este conteúdo ideacional manteria sua carga de excitação.
No  lugar dessas ideias recalcadas ao inconsciente surgem outras na consciência ? Ou esse conteúdo é retirado totalmente da consciência sem rastros? E quando terminar o período de latência essa intensidade vivida na infância será retomada visando à satisfação?
Na puberdade as pulsões sexuais começam a exigir com toda sua intensidade a satisfação através dos objetos incestuosos, através de investimentos libidinais. “A escolha objetal infantil era apenas uma escolha débil, mas já era um começo que indicava a direção para a escolha objetal na puberdade. Nesse ponto, desenrolam-se assim, os processos emocionais muito intensos que seguem a direção do Complexo de Édipo ou reagem contra ele, processos que, entretanto, de vez que suas premissas se tornaram intoleráveis, devem em larga escala permanecer afastados da consciência.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
Da puberdade em diante o indivíduo tem a tarefa de desvincular-se dos seus pais. Qual o impulso que faz a pessoa desejar desvincular dos pais? Será que algum dia ocorre essa desvinculação? Enquanto não ocorre essa emancipação permanece  impossível ao jovem participar como membro da comunidade.
“Para o filho essa tarefa consiste em desligar seus desejos libidinais de sua mãe e emprega-los na escolha de um objeto amoroso real externo e em reconciliar-se com o pai, rebeldia infantil, tornou-se subserviente a ele. Essas tarefas são propostas a todas as pessoas; e é de causar espécie quão raramente as pessoas enfrentam tais tarefas de maneira ideal – isto é de maneira tal que seja correta, tanto psicológica como socialmente.” S. Freud Conferência XXI – O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. (1916-1917)
A construção de Freud sobre o Complexo de Édipo parte da perspectiva desenvolvimentista e pragmática. Essa construção percorre toda sua obra e vai se modificando pouco a pouco,  entretanto,  a ideia de que complexo de Édipo  é considerado o núcleo da neurose permanece no decorrer de toda sua obra.

PAULA ADRIANA NEVES COUTO
PSICANALISTA
paulaadriana.couto@gmail.com
tel: (11) 9 7656-7297
Consultório: Av. Leôncio de Magalhães, 1138 - Jdim São Paulo


Próximo  ao Metrô Jdim São Paulo




domingo, 8 de maio de 2016

O desejo no fim e na(s) sequência(s) - Stylus (Rio de Janeiro)

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro out. 2015

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO: LAÇOS E DESENLACES

O desejo no fim e na(s) sequência(s)1

The desire at the end and in the sequence(s)


Albert Nguyên*
AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência



RESUMO
Nos anos 1970, Lacan rompe com uma concepção ontológica da experiência e promove o "Yadl'un" [Há um] que obriga a repensar o desejo, o gozo vindo para o centro dos debates. "Yadl'un" responde a "não há relação sexual", o que não acontece sem promover a questão da existência (conferir as fórmulas da sexuação). Correlativamente, a doutrina do pai e a do sintoma sofrem uma profunda transformação, que vai até fazer do próprio pai um sinthoma. Os efeitos sobre a psicanálise, em particular sobre a conduta dos tratamentos, são importantes e giram em torno de três termos: gozo singular, traço de singularidade e traço de humanidade. Uma nova clínica e um inconsciente que convém chamar real se deduzem disso: é o tempo do falasser.
Palavras-chaveYadl'unSinthoma, Traço de humanidade.

ABSTRACT
In the 1970s Lacan breaks up with an ontological conception of the experience and promotes the "Yad'lun", which obliges to reconsider the desire, the jouissance moving to the heart of the debates. "Yad'lun" answers to "There's no sexual relationship", which does not take place without promoting the question of the existence (check the formulae of sexuation). At the same time, the doctrine of the father and that of the symptom undergo a deep transformation which will make the father himself a sinthome. The effects on psychoanalysis, particularly on the way of the treatment is conducted, are important and center around three terms: singular jouissance, a singularity trace, and humanity trace. A new clinic and an unconscious which suit to be called real are deduced from this: it's time for the parlêtre.
KeywordsYadl'unSinthome, Stroke of humanity.



Há, no ensino de Lacan, um deslocamento com relação ao desejo que vai do reconhecimento à causa, e, a partir daí, o desejo é um efeito, efeito de significante tomado nas redes da metonímia. É o tempo dos desenvolvimentos sobre o ser, que Freud havia apontado com o "Kern unseres Wesen", ser que se deve fazer advir por meio da interpretação que libera do sentido.
A consequência do deslocamento é marcada: passa-se do desejo ao gozo, e aí a interpretação muda de direção e não visa mais ao sentido e ao desejo, mas à causa do desejo – em outras palavras, ela trata o desejo como uma defesa, defesa contra algo que ex-siste e que é o gozo.
Se por algum lado a psicanálise funciona pela falta e diz respeito ao ser e à falta a ser, Lacan, nos anos 1970, rompe com essa concepção ontológica da experiência, introduzindo – devido ao gozo – seu Yadl'Un [Há Um] (LACAN, 1971-72/2012): primado do Um que obriga a repensar a questão do desejo devido à deflação do desejo, e o gozo vem para o centro. Esse momento, que é também o da colocação em prática do passe, libera ao sujeito a solução de seu desejo, ao qual a partir de então ele não atribui mais a mesma importância, ocupado que está então com o Yadl'Un, que traduz aquilo que permaneceu fixado, aqueles famosos restos sintomáticos de Freud, o gozo irredutível.
Esse Il y a de l'Un [Há Um] responde àquilo a que o sujeito foi confrontado no momento da travessia do fantasma, ao Não há relação sexual. Com Yadl'Un, o sujeito se sabe só, se sabe falando sozinho, sem o Outro que fez seu tormento, mas também condicionou seu desejo: é a solução, a deflação do desejo que havia se constituído a partir das contingências da vida, dos acidentes de sua história.
O que muda para o sujeito – que doravante afasta-se da questão do ser que carregava o fantasma – é que ali onde ele não tem mais que se defrontar com o Outro do qual ele sustentava o gozo, ele vai ter que se defrontar com o Um. O problema consiste no status de falasser do sujeito: se ele se desfez do Outro do fantasma, ele encontra, no entanto, o Outro enquanto Outro, em particular quando para um homem esse Outro é uma mulher de que ele fez seu sintoma. Aí está todo o debate em torno do Φx e da identificação a uma posição sexuada. O problema com o gozo é que ele é autista e que o desejo, por sua vez, tem que lidar com o parceiro, com o Outro.
Mas Lacan consegue lograr esse feito considerável de conjuntar a falta a ser (o desejo) e a questão da existência (o gozo), o existe ou não existe. Não há desejo que não encontre o gozo pulsional, e a raiz do Outro é o Um.
O que muda no que diz respeito ao desejo e em particular para o desejo do analista, é que por levar em conta osinthoma que se trata de usar logicamente, uma vez que sua natureza de gozo é localizada, para atingir seu real ao fim do qual não há mais sede (LACAN, 1975-76/2005, p. 15), a prática da análise não é mais orientada para o sentido, a verdade e o desejo, mas para o real e o gozo do sinthoma. Ela se torna uma prática do cingir o real do sinthoma, vai para além do Ideal para atingir o objeto a como causa: a travessia do fantasma abre a janela sobre o real (LACAN, 1967a/2001), sobre o saber real que é o inconsciente.
É possível deduzir daí a fórmula de destino do fantasma e a perspectiva que ela abre:


Ao final de um tratamento, a questão é precisamente a do desejo do analista. No "Discurso na Escola Freudiana de Paris", Lacan questiona: "A que tem que responder o desejo do psicanalista? A uma necessidade que só podemos teorizar como tendo que produzir o desejo do sujeito como desejo do Outro, ou seja, fazer-se causa desse desejo. Mas, para satisfazer essa necessidade, o psicanalista tem que ser tomado tal como é na demanda" (LACAN, 1967b/2001, p. 271).
Por esse motivo não há correção do desejo devido ao analista, mas Lacan propõe o passe "onde o ato poderia ser apreendido no momento em que se produz" (Ibid.). O que o passe registra é que "o desejo (desidero,desideration) [...] sofre aqui a deflação que o reconduz a seu desser" (LACAN, 1967c/2001, p. 336). O analista, ocupando o lugar do semblante de objeto, prestou-se em-corpo (en-corps) à operação analítica que traz à tona o fato de que o inconsciente só joga com efeitos de linguagem. É algo que se diz sem que o sujeito ali seja representado, nem que ele ali se diga, nem mesmo que ele saiba o que ele diz, mas na saída o desejo é marcado por essa deflação que Lacan nota. Ele vai, aliás, mais longe, dando ainda um passo a mais, e temos: "Um dizer que se diz sem que se saiba quem o diz, é a isso que o pensamento se furta" (Ibid., p. 335).
É isso que o passe registra, mas é preciso, então, entrar no "After", o pós-passe, a "Nachpass" em que justamente o desejo do analista que conduziu o tratamento, consequência da queda do sujeito suposto saber que traz à luz seu inessencial, encontra-se transformado.
Podemos, então, até mesmo nos questionar como, a partir daí, vai se encontrar modificada essa posição do analista, pois se o passe foi dado,2 o analista encontrase colocado em um outro lugar, implicado em uma outra função para o tempo que vai do passe ao fim, justificativa evidente de que o passe não é o fim da análise.
Como formular essa "segunda" função do analista, que deve ser deduzida do campo que Lacan abriu com o gozo e o sinthoma, mas também com a evolução da doutrina do pai?
Esquematicamente, levando em conta o lado redutor de qualquer esquema, poderíamos dizer que a função primeira do analista diz respeito ao fantasma e ao desejo até a travessia, ao passo que a segunda função diz respeito essencialmente ao sinthoma e ao gozo. Então, qual posição para o analista? Diria que me parece poder seguir a indicação que Lacan dá na conclusão da terceira resposta de "Radiofonia": "Desloco-me com o deslocamento do Real no simbólico, e condenso-me para dar peso a meus símbolos no real, como convém para seguir o inconsciente em sua pista" (LACAN, 1970/2001, p. 418), esse inconsciente, como ele precisa, feito de depósitos e de aluviões, homogêneo àquilo que ele dirá da alíngua em "A Terceira".
Incluí em meu título, "o depois", as sequências [les suites]. Elas estavam previstas por Lacan desde a "Proposição": ele (o passe) "permitia um controle não inconcepto de suas sequências" (LACAN, 1967a/2003, p. 281).
Para situar essas sequências, entre o passe e o fim, e, sem dúvida, para além do fim quando se trata de ocupar o lugar de analista, diria que as sequências consistem no tratamento das consequências da não relação sexual, da relação com o Um e da relação com a existência e a inexistência.
A que tipo de prática essas sequências respondem? Elas se sustentam essencialmente por uma prática da contingência, ou seja, o não-todo, e por uma prática da diferença.
Precisemos o contexto para ambos os casos:
– que haja inúmeras contingências que tenham feito e esmaltado a vida do sujeito não impede que uma contingência, e apenas uma, tenha permitido denodar a neurose: cada qual com sua contingência. Entrada no registro do não-todo.
– A diferença: lembro aqui a definição de Lacan em ...Ou pior: "É o Um como um sozinho, o Um tal qual, qualquer que seja a diferença que exista, todas as diferenças que existam, todas as diferenças se equivalem, não há senão uma, é a diferença" (LACAN 1971-72b/2011, p. 165). Definição que ele completa ao distinguir o Um de diferença e o Um de atributo: "Esse Um de diferença tem que ser contado como tal naquilo que se enuncia daquilo que ele funda, que é conjunto e que tem partes. O Um de diferença não apenas é contável, mas deve ser contado nas partes do conjunto". É o eco deste Um que se encontrava no texto de "Subversão do sujeito e dialética do desejo": o Um que se conta sem ser.
É desse Um (a mais) que está em relação com o "ele existe" das fórmulas da sexuação que Lacan situa o Real: "où il est-là" (wiléla) [onde ele está-aí] como se expressa Lacan em "O aturdito" (LACAN, 1972/2001, p. 454).
Exemplifico esse "Onde ele está-aí":
Fazer de uma mulher seu sintoma não promete, contudo, a paz e a harmonia, a tranquilidade. Muito pelo contrário, uma intranquilidade inquietante e estranha pode, com uma acuidade particular, fazer justamente surgir o seguinte: a diferença absoluta não é uma palavra vã. E tal contingência certamente faz brilhar a dobra do sujeito, a falta, interroga o amor, reativa o malogro que o sucesso mascarava, confirma o heteros com o qual o sujeito topa: é não-todo.
E é também a interrogação renovada sobre o desejo: o que quer o sujeito a partir desse vislumbre perturbador? Saber se ele quer aquilo que deseja em resposta é crucial... e, além disso, não definitivo, pois ele tem até mesmo a certeza de ali estar confrontado novamente no momento do surgimento de uma próxima contingência.
Confrontado com essa diferença índex da não relação e confrontado com esse "ele está-aí" do real, o sujeito tem a escolha de enfrentar isso e assumir sua consequência: 1) o saber; 2) pour-suivre [para-seguir/pro-seguir] a partir desse ponto de real; 3) assumir a barra de divisão. Confrontado, não com aquilo que não há, mas com o que há, o que ex-siste, ele pode ver interesse em responder a isso.
No final das contas resolve-se aqui a questão do consentimento àquilo que exsiste. A resposta dada indica o alcance do "ele existe" das fórmulas de Lacan sobre a sexuação que aí se verificam: é a escolha da existência mais do que do ser, e é isso que mobiliza no sujeito a coragem de que ele poderá, ou não, testemunhar nas sequências. Terminar sua análise claramente não protege da contingência e do não-todo, muito pelo contrário.
Assim sendo, a consequência ética implicada é facilmente dedutível – é uma ética do desejo suplementada pelo consentimento ao Real, ao impossível: apoiar-se naquilo que existe vale mais do que naquilo que existiu ou existirá. Uma ética que integra o que Lacan indica (LACAN 1971-72b/2011, p. 206) no que tange à posição feminina, entre centro  e ausência, ou des-senso , entre inexistência e suplemento, integrando a oposição, a diferença entre o Há Um [Yadl'Un] e a não relação a partir do questionamento radical do sentido.
Não há dúvida de que a direção do tratamento sofre efeitos disso a partir do momento em que o analista se regula sobre o nó que forma esse ternário: Há Um [Yadl'Un], não há relação sexual e "o corpo se goza", gozo fechado, sem Outro: prioridade ao Real, mas não sem o simbólico para alcançá-lo.
Para concluir, gostaria de tentar fazer sentir aquilo em que toca essa mudança, mudança "fina como um fio de cabelo" e, no entanto, decisiva na prática da análise e na vida, essa "segunda" função do analista.
Que se prescinda do pai utilizando-se disso, no RSI e o Sinthoma, Lacan mostrou que a experiência, na verdade, desvela um para além do Édipo, do Nome do Pai e, até a père-version [pai-versão/perversão]. Essa père-version faz valer, no caso de Joyce, uma transmissão que opera a partir da função de fonação, em outras palavras, uma transmissão que põe em jogo o objeto voz como causa. Lembremos o caso relatado por Lacan na "Proposição...", em que o analista se vê tornar-se uma voz, e também o caso de Gide, cujo desejo permanece fixado à clandestinidade devido a um defeito de humanização: um desejo não humanizado. Humanizado é um termo forte, que remete a um registro diferente do simbólico.
É por isso que proporei que a análise levada depois do passe é o vislumbre, a experiência dessa humanização. E gostaria de fazer sentir aquilo que toca essa mudança, que chamarei de traço de humanidade, traço que toca a condição humana, ao humano como tal, aliás, sem dúvida, aquilo a que Lacan chamou de "as amarras do ser".
Falo, portanto, de traço de humanidade, esse traço provavelmente carregado por cada um e próprio a cada um, efeito do Um e da alíngua, mas que deve ser distinguido do traço comum apontado por Freud e destacado por Lacan, que diz respeito ao ódio e à crueldade que a covardia recobre, e que a análise reverte em coragem em certas condições, isto é, com a condição de que esse traço de humanidade tenha podido ser extraído. Traço singular, que responde de um gozo singular. Como apreendê-lo, senão fazendo-o equivaler a esse ponto de fragilidade do sujeito, a "dobra do sujeito", para retomar o termo de Lacan, esse traço de divisão onde ele se encontra sem apoio. Para acessá-lo ainda é preciso ter podido desarranjar a defesa contra o gozo.
Extrair esse traço procede, diz que o analista pode responder em termos de saber a questão, mas não diz o que o sujeito vai ou pode fazer com ele, tanto que, diante do real, esse saber deve ser inventado a cada vez... sem garantia.
A análise, de saber, entrega uma resposta diferente daquela da neurose. E o analista faz sua parte: se "se sabe consigo" ["on le sait soi"], deve-se fazer emergir essa resposta do lado do analisante, para o qual ela está em espera [en souffrance]... e pode, portanto, ser ouvida. Se esse for o caso, a análise encontra-se então expandida, especialmente em seu fim.
Portanto, é com esta resposta que é possível ouvir no fim do Seminário XI em que é justamente o Um que Lacan aí aponta, com sua sequência: a significação de um amor sem limite, porque ele não está fora dos limites da lei, um amor que podemos dizer humildemente vivo, e onde somente ele pode viver, pois, com efeito, a vida se encontra mudada por isso: viver o que ex-siste, viver a partir daquilo que ex-siste.
Para o analista, o que está em função na conduta dos tratamentos é uma relação nova com o inconsciente, uma relação transformada com a psicanálise que constitui a resposta do fim da experiência e uma outra relação com a vida, digamos, para ser mais específicos, a relação com o real da vida.
O saber do psicanalista é saber sobre o sinthoma e procede do saber sem sujeito (Ibid., p. 79), isto é, do poema que ele é.
Para concluir, direi que esse traço de humanidade é, na realidade, aquilo que protege da dor de existir, é aquilo que dá essa saída para o sujeito não se precipitar no furo (saída melancólica) ou de permanecer ali fascinado (tratamento interminável), mas, pelo contrário, de ir ao encontro dos inesperados. É fazer viver "la volée de l'humanité" [o voo/roubo da humanidade] para retomar o termo de Hélène Cixoux, aquilo de que cada um tem propensão a se desviar. Que ele perceba que o voo [volée] volta em espiral, e o traço de humanidade pode então viver no centro do sujeito que ele divide. Em outras palavras, para viver, o tratamento do real da vida é requerido: ela ex-siste, a vida causa problema, o gozo do ser vivo também, mas podemos aplicar-lhe a fórmula que Lacan deu para o real: onde ela está-aí.
Acontece o mesmo para o psicanalista: é de repente [au vol] que ele pode ouvir e soltar sua interpretação. Nas sequências que disso resultam poderá, então, concluir-se que há (ainda um "Há" [Y a]) que houve [il y a eu] ato e que houve psicanalista [il y a eu du psychanalyste].

Referências
LACAN, Jacques (1967a). "Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
__________. (1967b). "Discurso na Escola Freudiana de Paris" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
__________. (1967c). "O engano do sujeito suposto saber" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
__________. (1970). "Radiofonia" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
__________. (1971-72a). Le séminaire, livre 19: ... ou pire. Paris: Seuil, 2011.
__________. (1971-72b). Le savoir du psycanalyste, inédito, Leçon du 4 mai, 1972.
__________. (1972). "O aturdito" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
__________. (1975-76). Le séminaire, livre 23 : Le sinthome. Paris: Seuil, 2005.


Endereço para correspondência
E-mail: a.nguyen33@numericable.fr

Recebido: 12/01/2015
Aprovado: 20/04/2015



Tradução: Cícero Oliveira
Revisão da tradução: Dominique Fingermann
* Membro fundador da IF. Psicanalista em Bordeaux (França). AME da EPFCL, membro da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano. Autor regular da Revista l'En-je lacanien.
1 Texto apresentado nas Jornadas da EPFCL, realizadas em 30 e 31 de novembro de 2014. Jornadas realizadas nos dias 29 e 30 de novembro de 2014 na Maison de la Chimie, em Paris (França).
2 Em francês si la passe est franchie, equívoco com a expressão "franchir le pas", "dar um passo" em português.
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Laços e desenlaces: reviravoltas na clínica psicanalítica - Stylus (Rio de Janeiro)

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.31 Rio de Janeiro out. 2015

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO: LAÇOS E DESENLACES

Laços e desenlaces: reviravoltas na clínica psicanalítica

Linkings and unlinkings: overturns in psychoanalytical clinic


Dominique Fingermann*
AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil
Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Est (France)

Endereço para correspondência



RESUMO
O texto propõe um recorrido da questão dos laços e desenlaces e suas diversas reviravoltas ao longo da experiência analítica. A resposta de analista constitui uma ocasião excepcional, por fazer laço com aquilo que se apresenta como desenlace fundamental: o sintoma singular da existência de cada sujeito particularmente tocado e enlaçado pela lei do significante. Se a transferência constitui um falso laço necessário à exploração do sintoma, a "intervenção sobre a transferência" configura um radical Dizer-que-não aos ditos da demanda, mas permite uma ressonância do Um-Dizer do sinthoma, possibilidade única de enodamento com a estrutura RSI.
Palavras-chave: Laço, Discurso, Transferência, Sinthoma, Dizer.

ABSTRACT
The text proposes a recurrence of the question on related to linkings and unlinkings and their various overturns along the psychoanalytical experience. The answer of the analyst becomes an exceptional occasion for creating a bond with what presents itself as a fundamental outcome: the singular symptom of existence of each individual particularly touched and entwined by the law of the significant. If transference is a false link necessary to the exploration of the symptom, the "intervention over transference" configures a radical Say-not to the sayings of the demand, while it allows for a resonance of One-Saying of the sinthoma, a unique possibility of enoding with the RSI structure.
Keywords: Link, Discourse, Transference, Sinthoma, Saying.



1. Atualidade: os laços em questão
A questão dos laços e desenlaces é um problema da atualidade, basta constatar à nossa volta os estragos e as novidades que propõem a economia de mercado, o discurso que rege os laços na contemporaneidade. Vale observar que o Discurso Capitalista constitui paradoxalmente um discurso sem laço, já que o circuito insaciável de produção dos objetos "alimenta" e retroalimenta autisticamente os "proletários" desse discurso, em vez de pôr em causa a falta do objeto, no laço com o outro: um laço chamado desejo. A ciência postula, calcula, o mercado vende; a ciência calcula, o mercado vende... e o objeto falta. Não podemos ignorar que os analisantes do século XXI que nós recebemos são dominados, atravessados, atravancados por esse discurso contemporâneo, embora, ao recebê-los, sustentaremos os giros dos quatro discursos que a estrutura condiciona.
Podemos elencar algumas das particularidades dos laços na atualidade:
– a precariedade dos laços determinados pelo Discurso do Capitalista que sujeita os humanos à condição de proletários isolados e condenados ao gozo desenfreado dos gadgets;
– a novidade dos laços oferecidos pelos tempos atuais, quando todas as composições são possíveis e mesmo politicamente corretas (hetero, bi, homo, pansexual, swing, ou simplesmente homoafetivo);
– a praticidade das "oportunidades" distribuídas pelo mesmo discurso, acumpliciado ao discurso da ciência "facilitando" os encontros (e os desencontros) com parceiros eróticos, com filho, com o óvulo congelado, com espermatozoide seleto etc., e/ou com os aplicativos permitindo achar seu táxi, seu nerd, sua septuagenária, seu bi, seu trans, seu tetraplégico etc.
Lacan alertou de diversas maneiras sobre o futuro da ilusão da ciência em relação aos laços; não esqueçamos a sua advertência quando, no final da "Proposição...", ele evoca os campos de concentração como paradigma do efeito de segregação do discurso atual:
[...] Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles, para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação (LACAN, 1967/2003, p. 263).
A universalização introduzida e produzida pela ciência e os mercados globalizados conduz a remanejamentos dos grupos sociais até os processos de segregação, dos quais os campos de concentração anteciparam o modelo.
A ética da psicanálise, que dirige e orienta a clínica que dela procede, esbarra com os efeitos do discurso da contemporaneidade, mas barra o mal-estar específico dessa civilização quando mantém a subversão do sujeito barrado e eleva a sua causa à dignidade de agente de um novo discurso, um novo laço que preserva o "efeito revolucionário" do sintoma (LACAN, 1969/2003, p. 378).
A ética própria ao discurso analítico determina e causa os "laços e desenlaces da clínica psicanalítica". Proponho-me a desdobrar os tratamentos lógico-éticos dos laços na experiência de uma análise e sua relação com os desenlaces que ela proporciona, e o novo enodamento que ela venha eventualmente a acolher.

2. No começo, há desenlace
A clínica psicanalítica, ou melhor dizendo, o discurso psicanalítico e a experiência que este proporciona, apresenta uma chance de resposta àquilo que não faz laço e que chega a se manifestar no mundo como inibição, sintoma, angústia, isto é, como avatares de um sujeito, dividido entre corpo e significante, entre gozo e sentido, entre real e semblante.
Essa resposta de analista, da qual nós, analistas, temos a responsabilidade (response-abiltity), constitui um laço extraordinário, excepcional, por fazer laço com aquilo que se apresenta como solidão radical, desenlace fundamental: o sintoma singular da estúpida e inefável existência de cada sujeito particularmente tocado e enlaçado pela lei do significante. Há um desenlace fundamental: a marca de gozo, que isola, mas distingue Um que ex-siste como incomparável.
Como chegam as pessoas aos consultórios dos analistas antes de se tornarem analisantes? Como falar desse começo, crucial, dessa passagem radical entre um desenlace fundamental e o laço transferencial que não acontece se não entrar, por chance, um psicanalista? Evoquemos o primeiro passo no laço analítico de alguns futuros, eventuais analisantes:
– Gabriel, quatorze anos, bom filho, explica com extrema sutileza como as coisas não são evidentes assim como deveriam ser. Como o amigo não é amigo, como o pai é demais, como a irmã pequena deveria ficar sempre pequena, como as provas cessaram de ser um desafio para constituir uma tormenta, como o jogo não tem mais graça por configurar uma obsessão, como os devaneios que fazem companhia atrapalham, como a sensação de inadequação e de perda dos aconchegos faz da vida um mistério, um constante desassossego. A adolescência, diz ele, não é tanto um problema quanto uma solução, pois oferece formas reconhecíveis e aceitas pelo discurso ambiente; não, o problema é anterior, desde que me conheço por gente, explica, contando a sensação corporal de desamparo quando de uma entrada em uma escola nova, e era pequeno demais para ler no quadro a sua inscrição e o local de sua classe. A análise, para ele, configura um laço possível para sua estrangeiridade, e sua sensação de desenlace generalizado.
– Said, cinquenta e oito anos, industrial abastado. Análise? Para pegar firme! Onde? Não sabe, e queria saber o que falta quando nada falta: dinheiro, poder, beleza, saúde, mulheres... Há um saber que não se sabe, mas procura um lugar, embora não quisesse perder muito e, milionário conhecido, pede um recibo do preço da sessão. As suas falcatruas o condenam a uma solidão sem recursos: análise, lugar possível para seu exílio.
– Madalena, vinte e oito anos, psicóloga jovem, bela e promissora, mas... o que fazer com essa ausência que atormenta e se desloca e se aloca em todos os assuntos da vida: profissional, amoroso, financeiro? Fazer análise, de verdade: como se fosse uma última chance para cingir esse real que estorva e se põe atravessado no corpo, na inteligência, nos laços!
– Esther, quarenta e nove anos, professora universitária em frangalhos, já sabe tudo, tantos anos de análise! O que não sabe? Ela, que passou a vida achando que "iam" flagrar que não sabe de nada. O que não sabe, pode salvar? A análise pode proporcionar um lugar, um enlaçar novo com o não saber.
Desarvorados, desamarrados, desenlaçados e, apesar de suas lamentações e/ou fanfarronadas, o primeiro encontro com o psicanalista não deixa de evidenciar onde, desde quando, como, algo "mais forte do que eu" cessou de fazer laço: com o outro, com os sentidos da vida, ou "simplesmente" no laço com o corpo próprio.
Desde os primeiros ditos, declinando desencontros, tédio, falhas e outras faltas de sentido, vislumbra-se o lugar de uma singularidade surpreendente, um lugar de onde emerge um Dizer que ex-siste, algo que se excetua dos ditos e, no entanto, os fomenta. É nesse lugar de desenlace radical que se destaca como um ponto de urgência, que responde "de l'analyste"; algo da função analista, da sua presença, faz laço, engajando esse estranho diálogo, aí mesmo, nesses pontos emergenciais, para que o sintoma de suas vidas ordinárias se torne analisável e possa vir, em um primeiro tempo de engancho, a constituir-se como sintoma analítico.
Portanto, uma coisa é certa: a "disposição" do analista precede a entrada em análise, isto é, precede a articulação do sintoma analítico com o sujeito suposto saber. É a disposição do analista no seu devido lugar no Discurso Analítico que produz esse laço, "dispositivo pelo qual o real toca no real".
Said, Gabriel e Esther no ponto original de seu ab sens arriscam transformar o pior em dizer (du pire au dire, diz Lacan).
Tomaram a palavra. Decisão, coragem, que nessa passagem ao ato não se contenta com o lamento dessa solidão existencial. Vieram, antes de tudo, Dizer, e falar de algo que não tinha cabimento, não fazia mais laço com mais ninguém. No começo era o desenlace que, em vez de se abismar, se arrisca a Dizer. Laço.
O que faz laço?
3. O que faz laço?
Laços de família, laços afetivos, laços do amor... não é preciso avançar muito na consideração destes exemplos para concluir sobre a ambiguidade da palavra laço: um laço conecta dois ou mais entre si, salva da solidão, conforta, assegura, tranquiliza, mas também o laço amarra, acorrenta, constrange, limita, incomoda: desconfortável.
Freud orientou sua escuta da fala dos analisantes em torno dos conceitos fundamentais que sua "práxis da teoria" extraiu, particularmente atento à forma como se aparelhavam, como se enlaçavam: os laços do eu com o outro, os laços com os sentidos da vida e os laços com o corpo próprio. Vejamos como o quadro esquemático da sexualidade no "Rascunho G", em 1895, é paradigmático da psicanálise enquanto teoria-prática do enlaçamento daquilo que não faz relação. O esquema antecipa os conceitos de pulsão, representação, fantasma, escrevendo nesse quadro sútil, o necessário enlaçamento do corpo, da representação, do outro e da falta de satisfação.


Os conceitos de sintoma, pulsão, identificação, Ideal do Ego, Ego Ideal, transferência, amor etc. permitiram-lhe não somente rastrear as dificuldades nos laços que apresentavam os seus analisantes, mas proporcionar a sua leitura dos fenômenos coletivos em O Ego e o Id (1923), Mal-estar na civilização (1929), Futuro de uma ilusão(1927) etc. Sem falar de como os mitos que desenvolveu lhe proporcionaram uma abordagem do real em jogo na estrutura: os mitos da pulsão, do Édipo, de Totem e Tabu, diversas versões do enlaçamento do real. Sabemos como a clínica psicanalítica logo forçará o surgimento, no seu arcabouço teórico, daquilo que "não se liga", a pulsão de morte, de onde se articulam conceitos fundamentais como repetição, resistência, Reação Terapêutica Negativa etc. Lacan dirá que o "Dizer de Freud" pode se enunciar como "não relação sexual": não há relação, por isso, há laço!
Lacan, sabemos, privilegiou a matemática, a topologia e a lógica para sua abordagem do real em jogo na estrutura. Desde os primeiros esquemas e grafos, a questão do laço do Um com o Outro se faz premente. O enlaçar, da fala, da imagem, do desejo, da fantasia, e finalmente do discurso, do semblante, dos gozos, do sintoma, do Dizer etc. constitui a urgência da sua práxis da teoria até os últimos rastros dos quais dispomos.
No decorrer de seu ensino, Lacan usou diversos recursos para explicitar as ambiguidades do laço e sua função na psicanálise, o laço do íntimo com o êxtimo, articulando sempre a estrutura do sujeito com o seu devir na experiência da psicanálise. Todos os recursos gráficos e lógicos apresentam a estrutura do sujeito desde os seus laços fundamentais com o Real, o Simbólico e o Imaginário: os esquemas L e R, os espelhos conjugados, o grafo do desejo, os toros da demanda e do desejo, o cross cap, a garrafa de Klein, o grupo de Klein, a escrita dos discursos, os nós borromeanos etc.
Desde sempre podemos dizer que ele procurou uma forma de formalizar e articular a "inacessibilidade do dois" e a distinção do Um.

A escrita dos discursos
Os laços sociais decorrentes da lógica do significante estão particularmente dedicados a escrever o que em cada um produz desenlace, e a menção dos dois traços paralelos // embaixo, entre o lugar da produção e o lugar da verdade, escreve o desenlace singular em cada discurso, o seu real particular.

O nó borromeano
Parte do princípio do desenlace radical das três diz-mansões do fala-ser, real, simbólico, imaginário, para concluir quanto à função enlaçadora de uma quarta "consistência", subvertendo o sintoma, fazendo da sua função radicalmente revolucionária de emergência real (por definição fora de laço) uma função excepcional de enodamento.
Foi necessário para Lacan um tempo extenso de seu ensino para chegar a esta conclusão e explicitá-la. Quanto tempo, quantas voltas, demoram as análises para produzir essa conclusão, ou melhor, este termo, já que no final das contas se trata mais de uma decisão existencial do que de uma conclusão lógica?

4. As voltas dos discursos
A psicanálise é uma experiência à qual se chega pelo sofrimento do desenlace (com o corpo, o outro, a significação fantasmática) e que prossegue pela demanda que faz apelo ao outro – portanto, laço.
Uma brecha aberta na homeostase fantasmática aponta emergencialmente para a separação do sujeito e do objeto que lhe serve para suportar e tamponar a sua divisão, na medida do possível. Por algum motivo, fica escancarada a disjunção entre  e o objeto "a". Uma emergência, um triz, um cisco desestabiliza. Recordome de uma pessoa que procurou análise por causa de um cisco de camarão que havia se enfiado em seus dentes e tinha causado uma crise de pânico, abalando o equilíbrio deste homem monstruosamente egocêntrico e inabalável!
• O Discurso do Mestre escreve essa disjunção entre o objeto e o sujeito; a produção de objetos "mais-de-gozar" não têm comum medida com o sujeito barrado  que funda a verdade oculta, causa do movimento do significante mestre S1 em direção ao outro significante S2, fundamento da transferência. O real do Discurso do Mestre é esta disjunção flagrada, deflagrada: desenlace.


Fazendo causa desse impossível, o Discurso do Analista põe o "a" como semblante e coloca em cena o sujeito  como seu outro, impossível de alcançar, mas interlocutor. Giro na estrutura:


A cada mudança de discurso, um "novo amor" (LACAN, 1972-73/1985, p. 26), uma nova promessa de laço.
Interpelado, convocado assim pela função analista, o sujeito pode entrar em análise, colocar em funcionamento o discurso analisante, dito Discurso Histérico: no começo de uma análise há transferência, que usa o laço significante para que S1 produza um saber S2.


A transferência parte do desejo, , que procura no outro o significante mestre S1 de seu gozo oculto "a"; investida que produz um saber S2 como mais-de-gozar. No entanto, este topa com um real, a impossibilidade de fazer com que esse saber toque no corpo, elucide os mistérios do "corpo falante", que funda a sua verdade recalcada.
Diante da sua impotência ressentida, o seu desenlace próprio (a // S2), vemos como o Discurso Histérico pode provocar a resposta do discurso canalha pelo deslize () que curto-circuita a impotência, colocando S2como agente de um discurso que enlaça o outro com um saber sobre o gozo.


A não ser que o Discurso do Analista, por chance, se apresente e coloque o objeto recalcado em causa.


"(...) desse discurso psicanalítico há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro" (LACAN, 1972-73/1985, p. 26).
• Os discursos, para Lacan, consistem em uma escrita, que escreve tanto o laço quanto o desenlace fundamental aos quais a estutura do significante confina; os discursos apresentam os diversos "tratamentos do real" possíveis a partir da estrutura, cada um "fracassando" em um real particular.
"Há sempre um dos laços que é rompido" (LACAN, 1976-77/inédito, aula de 10/05/1977).
• A roda dos quatro discursos "ocupa" o espaço transferencial da análise. Como ressalva, o trabalho analítico propriamente dito, trabalho analisante, se sustenta desde o Discurso da Histérica, na medida em que esteja "dirigido" pelo ato do analista que faz laço a partir do objeto que fundamentalmente falta e não faz laço, como desdobra a escrita do Discurso do Analista.

5. No começo há transferência
Falar de "Laços e desenlaces na clínica psicanalítica" consiste em falar da transferência e da intervenção sobre a transferência que dá um fim a este laço tão particular.
Parece óbvio dizer que a transferência é o paradigma do laço analítico e que suas interrupções se qualificam como desenlaces. É mais intrigante pensar que ela é construída em torno de um laço amoroso, diz Freud, cujo objetivo fundamental, o fim da análise, é o seu próprio desenlace: basta lembrar como Freud, no final de uma análise, aponta para a liquidação da transferência.
Propomos colocar isso à prova: a transferência é mesmo um laço e, ao procurar seu fim, se procuraria um desenlace?
Partindo da premissa: a transferência é o laço específico que condiciona e configura a experiência analítica, consideramos a questão: o que, na transferência, "faz" laço entre os parceiros?
– Não se trata de um laço intersubjetivo, entre dois sujeitos, como precisa e retifica Lacan em diversas ocasiões: a escrita dos Discursos, que permite configurar diversos tempos transferenciais, confirma essa "não intersubjetividade" da transferência.
– Para Freud, antes de se tornar o laço amoroso autêntico que ele descreve como "motor e obstáculo" ao trabalho, a transferência consiste, antes de tudo, em uma transferência de representação, isto é, de significante; algo, um valor de gozo, desliza ou se condensa, se transfere de um para o outro: metáfora e metonímia.
Verificamos essa matriz da transferência na escrita do Discurso do Mestre: S1→S2, cuja "histerização" procede da transferência do sujeito  ao significante 
articulado na cadeia .
– A transferência não é, senão, esse deslizamento significante e sua consequência de produção de um objeto "mais-de-gozar", que se distingue por não pertencer à cadeia, ou seja, por ser algo que não se encadeia.
Lacan formalizará esse laço, oriundo da própria estrutura do significante, como "Sujeito Suposto Saber", vetor de uma demanda inesgotável. Mais tarde, ele completará dizendo: "aquele a quem suponho um saber, eu o amo", pois a suposição de saber fomenta uma demanda, que é sempre uma demanda de amor.
– O amor – autêntico segundo Freud; amor novo, segundo Lacan – procede da promessa do saber – articulação de significantes – que permitiria enlaçar o objeto que não se articula, nem encadeia, nem enlaça, mas embutido na promessa de saber do inconsciente, confere ao outro suposto um brilho especial agalmático.
– A demanda, laço próprio da transferência, é orientada pelo desejo, ou seja, pelo objeto faltante que causa o seu movimento.
– O fantasma reveste esse objeto que falta e fixa a sua consistência a partir das substâncias ocasionais dadas pelos objetos pulsionais e suas ocorrências para tal sujeito.
– A demanda, por fim, revela a sua armadilha: "eu te peço recusar o que te ofereço porque não é isso" (LACAN, 1971-72/2011, p. 81).
– Portanto, a respeito da questão "a transferência é mesmo um laço?", podemos concluir com as palavras de Colette Soler: "é um falso laço!"; a transferência é um amor verdadeiro, mas é um falso laço (SOLER, 2011-12/2012).
Pois tanto a demanda quanto o amor, e o desejo formatado pelo fantasma, se dirigem ao outro para lhe surrupiar o seu bem próprio, as diversas modalidades do objeto, e ainda declama "não é isso!". A transferência é um falso laço, porque não faz laço entre um e outro parceiro do jogo, mas sim entre o sujeito e o objeto.
Desde 1951, Lacan afirmava que não se tratava na transferência de um laço com a pessoa do analista, mas "dos modos permanentes segundo os quais ele constituía seus objetos" (LACAN, 1951/1998, p. 224).

6. Intervenção sobre a transferência
A intervenção sobre a transferência é a interpretação na sua dimensão fundamental de ato. A interpretação por princípio descontinua a transferência: contra a transferência, ela silencia a demanda de amor, de sentido, de complemento da significação fantasmática, desfaz todos os falsos laços.
Há um radical Dizer-que-não (LACAN, 1972/2001, p. 453) que fomenta qualquer dito interpretativo.
Mais do que denúncia, é silêncio, corte, suspensão. Podemos então inferir que se a transferência faz laço (falso), a interpretação suspende o laço, produz o desenlace?
A interpretação intervém sobre a transferência descontinuando, cortando etc. os ditos da demanda; produz umdesenlace do falso laço programando a queda do Sujeito Suposto Saber, o desenlace transferencial.
No entanto, e isso desde os primeiros passos de uma análise, o analista por chance, responde. Se o Desejo de analista, por princípio não responde aos ditos da demanda, responde sim, ao Dizer da demanda do analisante.
O Dizer da interpretação faz laço com o Dizer da demanda do analisante...
"Um analista verdadeiro não pretenderia outra coisa, senão fazer que esse dizer sustente o lugar do real, até se provar outro melhor" (Ibid., p. 477).
Em face do Um Dizer do Um sozinho: um encontro possível, com "do" analista. "Será que o Um-dizer, por se saber Um-todo-só, fala sozinho? Não há diálogo, disse eu, mas esse não diálogo tem seu limite na interpretação, por meio da qual se garante como no tocante ao número, o real" (LACAN, 1973b/2003, p. 548).
Qual é o objetivo dessa operação?
A satisfação, diria Lacan no "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11".
A operação analítica, via a não complacência com a demanda de falso laço transferencial (isto é, o manejo da transferência), trata de produzir uma conclusão, uma realização, uma dedução, em primeiro lugar, da inacessibilidade do dois, da comprovação da "não relação sexual".
Essa operação de corte pode produzir uma satisfação (satis-fazer) enquanto interrompe a insatisfação da procura insaciável de um Dois que complete e conforte, a demanda de reduzir o hiato (impossibilidade) entre o S1 e o S2. A "travessia" da fantasia faz parte dessa operação "realizar" que "não há...", que não há resposta ao Um no Outro: "não há relação sexual". Em segundo lugar, a conclusão, dedução do "Há Um", "Ya d'l'Un", durante tanto tempo fonte do "horror de saber", pode, sim, pacificar a intranquilidade de Um que procura sua resposta no Dois. Há, sim, algo que o Um-Dizer da demanda localiza sem apreender. Algo singular que não faz laço com o Outro, mas permite que as três consistências do fala-ser se contem como Um. O sinthoma faz laço, faz o enodamento dos três, RSI, desde essa marca singular que não se cicatriza.
A intervenção sobre a transferência pode produzir e/ou conduzir à báscula do pior no Um do Dizer.
Trata-se de um novo laço consigo mesmo, "reconhecimento" do sintoma, que se autoriza "de si mesmo", em se fazer conhecer e não temer em causar o outro: laço entre sinthomas que o amor e a escrita podem muito bem encenar.
O Dizer da interpretação é um "dizer que não" à demanda, mas não é da ordem da negação, ele repercute o dizer do Um sozinho que se infere de todas as demandas, o Dizer da demanda. A interpretação produz um desenlace com a demanda, mas conecta, faz laço com o Dizer da demanda que ele repercute quando fundamentalmente equivoca e faz vacilar, precisamente atordoa qualquer sentido.
O disparador do Dizer que fomenta as demandas é o ponto de incidência traumático do Outro (da alteridade, S de A barrado, Outro que não responde), ponto traumático da incisão da ausência de sentido.
O Dizer da interpretação proporciona uma ressonância para este lugar traumaticamente singular do encontro de Um com o não sentido.
Embora silencioso, ou muito pouco eloquente, o dizer do analista é "uma presença que responde", diz Soler, faz signo de um real, limite ao não diálogo", "testemunha de um real que lhe seja próprio" (LACAN, 1973c/2003, p. 556).
O desenlace flagrado no início das análises produz uma suposição de saber que torna o sintoma analisável até que da sua insistência irremediável se destaque o seu incurável, e que da intervenção sobre a transferência, pelo Dizer da interpretação, se produza o advento, a identificação da estrutura dupla face:
– Não há relação sexual.
– Há Um, existente.
Para que esse Um se sustente, seja suportável enquanto tal, ele precisa funcionar como Dizer, que embora fora dos laços da demanda dirigida ao Outro, enlace, enode o Inconsciente Real com o inconsciente linguagem e nisso detenha invisivelmente os corpos (LACAN, 1972-73/1985, p. 125).

7. O laço do sintoma
"O real que é algo com o qual de uma maneira expressa, digo eu, não temos relação" (LACAN, 1976-77/inédito, aula de 11/01/1977).
O real não faz laço: "seu estigma, o do real como tal, consiste em não se ligar a nada. Pelo menos é assim que concebo o real" (LACAN, 1975-76/2007, p. 119).
O sintoma, ou seja, o que temos de mais real, poderia fazer laço? Que aberração! O sintoma, por definição, mas sobretudo por experiência, não tem nada a ver comigo, é mais forte do que eu, não se conecta, não faz sentido, não se enlaça. Embora a neurose e a análise se dediquem a enrolá-lo nos diversos sentidos de uma suposta mensagem dirigida ao Outro (isso não obsoleta o texto de Freud "Os sentidos do sintoma", que retrata precisamente o sentido neurótico do sintoma), ele permanece irresistivelmente fora de razão, fora do sentido, a não ser seu sentido real. Eis, então, a sua graça irresistível: ele é indicador daquilo que resiste fora do senso comum.
Colette Soler (2011-12/2012) disse: "O sentido do sintoma é o real, signo do real, da não relação, mostra uma realidade particular fixada traumaticamente".
No seu Seminário O Sinthoma, Lacan explicita essa dimensão de forma singular do sintoma: "O sintoma central, claro, é sintoma feito da carência própria da relação sexual. Mas é preciso que essa carência tome uma forma. Ela não toma uma forma qualquer" (LACAN, 1975-76/2007, p. 68).
Desde seu ponto de origem traumático o sintoma não vai cessar de escrever a forma original com a qual a carência toma forma. O sintoma, acontecimento de corpo, enlaça desde a origem o furo, o signo e a forma corporal.
É uma aberração, sim, mas que enlaça o corpo, fazendo das três dimensões Um corpo.
O sintoma é laço, "o laço, o laço estreito do sinthoma, é algo que se trata de situar o que o sinthoma tem a ver com o Real, o Real do Inconsciente, se o Inconsciente for real" (Ibid., p. 98).
Laço enigmático, diz Lacan, que denota esse enigma, o cúmulo do sentido.
"Estabelecer o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma" (Ibid., p. 21).


Assim, aquilo que se apresenta como o que se tem de mais real, "acontecimento de corpo", realidade moterialque por definição não se conecta, não se enlaça, pode vir a "satisfazer", fazer cessar, a busca incessante da sua razão, no Outro.
Uma fixão de real que satisfaça a busca identitária de sentido do fala-ser: identificação do sintoma, ao sintoma.
"O saber, de um real do Um-todo-só [Un-tout-seul], todo só onde se diria a relação" (LACAN, 1973b/2003, p. 547).
No fim das voltas, então, ocorre o fim do laço transferencial analítico, início do laço sintomático.
Por fim, concluímos com Colette Soler: poder-se-ia (contingência) "fazer laço social com aquilo que está separado, disjunto", e em vez de falar de intersubjetividade, poder-se-ia apostar em uma inter-sintomacidade?
No fim: pode ser que a impudência, o Um-dizer sem vergonha, "impudence du dire", faça laço entre os ímpares díspares.
"A partir do dizer que 'há Um', fazer disso uso para fazer psicanálise" (LACAN, 1973b/2003, p. 547).
Assim, por fim:
Não Há relação.
Há laço, que leva em conta o real impossível.
Há nó, com o real que ex-siste.

Referências
LACAN, J. (1951). Intervenção sobre a transferência In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
__________. (1964-65). Le séminaire, livre 12: Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, inédito (aula de 27/01/1965).
__________. (1965-66). Le séminaire, livre 13: L'objet de la psychanalyse, inédito (aula de 02/02/1966).
__________. (1967). Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 263.
__________. (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
__________. (1969). Relatório do Seminário XV – O ato analítico In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
__________. (1972). L'Étourdit In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001.
__________. (1971-72). Le séminaire, livre 19: ...ou pire. Paris: Seuil, 2011.
__________. (1972-73). Le seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
__________. (1973a). Televisão In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
__________. (1973b). Relatório do Seminário 1971-72 – ...ou pior In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
__________. (1973c). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
__________. (1974-75). Le séminaire, livre 22: R.S.I., inédito (aula de 19/11/1974).
__________. (1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
__________. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário XI In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. , op. cit., p. 567.
__________. (1976-77). Le séminaire, livre 24: L'insu que sait de l'une-bévue s'aile a mourre, inédito (aula de 10/05/1977).
SOLER, C. (2011-12). Qu'est-ce qui fait lien? Paris: Éditions du Champ Lacanien, 2012.


Endereço para correspondência
E-mail: dfingermann@gmail.com

Recebido: 12/07/2015
Aprovado: 10/08/2015



* Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil. Ensinante no Collège de Clinique Psychanalytique du Sud-Est (France). Autora do livro Por causa do pior (Iluminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, e organizadora do livro Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014).
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Amar adentro - Stylus (Rio de Janeiro)

Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro jun. 2015

 

DIREÇÃO DO TRATAMENTO

Amar adentro

Love inside out


Dominique Fingermann*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — Brasil
Endereço para correspondência



RESUMO
O amor procede do exílio do ser banido da linguagem que assujeita o falante. É dai que deriva a sua "razão",reson, resonância, eco fora do corpo daquilo que d'alíngua não se encadeou nas leis da linguagem, e que se explora nas dobras do corpo Outro. Freud explica como o amor de transferência é um amor verdadeiro, mas como mente sobre suas intenções, pois, como todo amor, pega emprestado no outro o que lhe falta e usa isso genuinamente para encontrar o que falta para ele. O texto percorre os diversos aforismos de Lacan a respeito do amor para cingir o que suas ficções apontam como real: além de seu sentido e de suas significações, o amor mais digno é signo de Um.
Palavras-chave: Amor, Transferência, Verdade, Signo, Letra, Alíngua.

ABSTRACT
Love comes from the exile of being banished from the language that subjugates the speaker. It is from there then that its "reason" derives, reson, resonance, an echo outside the body of what the alingua has not connected with in the language laws, and that explores itself in the folds of the body Other. Freud explains that transfer love is a true love, but it lies about its intentions. Like any love, it borrows from the other what is missing in itself and uses it genuinely to find what is missing for it. The text explores several Lacan's aphorisms about love in order to establish the link with what its fictions approach as real: beyond its sense and significations, love is a sign of One.
Keywords: Love, Transfer, Truth, Sign, Letter, Alingua.



L'amour est enfant de bohème, qui n'a jamais connu de loi.
Bizet
Le coeur a ses raisons que la raison ne connaît point.
Pascal

O amor tem razões que a razão desconhece. É uma doçura que embala, embalsama, me-ama! É uma loucura que cativa, captura, enrola e arrebenta. A arrebentação do amar passa, e ressaca. O amar deita e rola. Amar adentra.
O amor, "pas-de-sens", o seu passo de sentido, deriva desde um "pas-de-sens", ab-sens, não sentido original. Mas o seu passo faz laço, faz dois — ao que parece —, faz de tudo, faz amor, "faz" poïesis: "fazer o amor, como o nome o indica, é poesia" (LACAN, 1972-73/1985, p. 98).
O amor procede do exílio do ser banido da linguagem que assujeita o falante. No entanto, ele solta alíngua nos gritos e sussurros, nas camas, nas rasuras, nas ruas, na pólis e na política, "bem me quer, mal me quer, bem me quer..." nos poemas, na literatura, na litterasura.1
O amor fora da lei tem razão, ele se apresenta como reson,2 re-som, ressonância, e eco fora do corpo daquilo que d'alíngua não se encadeou nas leis da linguagem, mas pode se explorar nas dobras do corpo, Outro, corpo que simboliza o Outro, corpo enquanto sítio da heteridade, nos vestígios enigmáticos de suas trilhas sonoras e outros afetos.
O ponto de partida, de rachadura, o sulco, de onde partem as histórias de amor, assim como o risco da letra que lança mão do texto, é a "palavra buraco", troumatismo3da moterialidade4: "Uma palavra buraco escavada em seu centro com um buraco, desse buraco onde todas as outras teriam sido enterradas. Não se poderia dizê-la, mas se poderia fazê-la ressoar, imensa, sem fim, um gongo vazio" (DURAS, 1964, p. 48).5
De beijo de língua em beijos d'alíngua, o amor adentra. Eventualmente, sexo e amor colaboram para fazer amor.
O amor é procura da ressonância no corpo Outro, eco do oco do Um dizer, "mot trou", palavra que inicialmente, radicalmente não faz sentido, só é moterialidade. A materialidade primordial da língua é traumática, não faz sentido.
A procura do sentido do amor, o achado de sua significação de fantasma que o fixa e amarra a certo objeto, procede da sequência da letra. A carta de amor que ela emite procura no outro o signo do Dizer do Um que alíngua exporta, explora, extrapola.

1. Freud explica a verdade do amor
O amor preocupa, ocupa, faz sofrer, faz falar, faz gozar: perigozo! O amor interessa à psicanálise.
No começo está a transferência. No começo de qualquer análise está a falta de sentido (pas de sens), que atenta e arrisca o passo do sentido (pas de sens) que alenta, mas dá trabalho: trabalho de transferência.
No começo das análises, o amor entra em cena e queixa, lamenta: de menos, demais, capenga, impotente, ferido, carente, obsessivo, compulsivo, exaltado, temido, deplorando; "não há dois, não há dois?, não há!"
No meio das análises, "o amor que se dirige ao saber" (LACAN, 1973/2003, p. 555) dá trabalho e dá voltas e voltas. O "amor" de transferência apela para "fazer saber", escrever uma nova carta a partir da letra oriunda do saber inconsciente "insu que sait", o "não sabido que sabe". A letra é o remetente da carta de amor.
O manejo do amor de transferência, isto é, a resposta ímpar do parceiro analista, sustenta o longo trabalho das análises que procuram seu fim. O analista, que se dispõe como destinatário, não responde à carta, mas o seu silenciar tão peculiar deixa ressoar a letra n'alíngua que transcorre a fala da associação livre. "Não se poderia dizê-la, mas se poderia fazê-la ressoar."
No fim das análises, desde Freud, aposta-se que as condições do amor não estejam tão rebaixadas, que as suas façanhas possam dar mais "satisfaction". Desde Freud o mínimo que se exige de uma análise é que ela permita um outro tratamento do gozo e do laço social, um outro enlaçamento, enodamento, do gozo, do corpo, no laço com o Outro.
Amor e transferência tecem o texto analítico — o laço social que suporta esse discurso nessa empreitada de corte e costura, enlaça a demanda de quem falta, à presença de quem não tem.
O amor interessa ao psicanalista, e Freud, desde os "Estudos sobre a Histeria", localizou o valor de verdade e de motor dessa mentira, armação/armadilha que o genuíno amor de transferência propõe.
Suas indagações insistentes ao longo de sua obra e em particular no texto "Observações sobre o amor transferencial" — tais como "não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu aparecimento no decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um amor 'genuíno'"e "por que outros sinais pode a genuinidade de um amor ser reconhecida? Por sua eficácia, sua utilidade em alcançar o objetivo do amor? A esse respeito, o amor transferencial não parece ficar devendo nada a ninguém; tem-se a impressão de que se poderia obter dele qualquer coisa" (FREUD, 1915/1953) — permitem concluir com Freud que, portanto:
— a transferência, o amor de transferência, é um amor verdadeiro.
— mas, por definição, como todo amor, ele pega emprestado no outro o que lhe falta e usa isso genuinamentepara encontrar o que falta para ele.
Essa metonímia fundamental do objeto de amor que pode fácil e genuinamente passar de um para o outro é um dos traços que Lacan apontara várias vezes como o cômico do amor verdadeiro.
A partir da clínica do amor com a qual se depara, Freud retoma a questão filosófica/ética do amor, que o cristianismo interpretou à sua maneira com o amar ao próximo "como a ti mesmo". A questão ética indaga os limites e a localização de um amor verdadeiro, autêntico, "o puro amor", um amor que levaria além do amor-próprio, do narcisismo.

2. Lacan diz que diz
Lacan, no decorrer de seus vinte e cinco seminários e Outros escritos, nunca cessou de falar de amor: o amor não cessa de, não cessa... Colhi algumas flores desse "dicionário analógico"6 lacaniano sobre o amor:
Paixão — Forma de suicídio — Meleca, Grude corporal — Cascalho que ri — Dom, Dádiva — Véu — Nada — Fetiche — Cômico — Rebaixamento — Mentira — Falta — Mito — Demônio — Duelo — Tragédia — Incômodos — Mãe — Pai — Enganação — Demanda — Reciprocidade — Atravessamento, Travessia — Narcisismo — Poesia — A(muro) — Impossível — Contingente — Necessário — Possível — Debilidade — Conexividade entre dois saberes — Falha — Exaltação — Espelho — Nada mais que uma significação — Nominação — Simbólico — Imaginário — Real.
Tantos enunciados, por vezes contraditórios, dão a deixa para a pergunta: "qual é a verdade do amor?". Ou antes: o que a verdade mentirosa encobre? Qual é o dizer de tantos ditos?
O dizer dos ditos não se abarca assim. Os aforismos lacanianos seriam uma maneira logicamente/poeticamente sutil de assestá-lo?
A verdade dos aforismos parece assestar sem acertar o dizer dos ditos sobre o amor; o aforismo, como a "significação" do amor é um para-ser (parecer/ao lado do ser). Lacan chega a rir de seus efeitos, por vezes grandiloquentes, e achá-los um pouco ridículos. Mas, convenhamos que são inesquecíveis e que tensionam, contribuem para que "o dizer não seja esquecido atrás do que se diz no que se ouve" (LACAN, 1972/2003, p. 448). Eles indicam um dizer, como uma lembrança encobridora indexa um real, à condição de que seu enigma se preste a uma disciplina do comentário e que não sejam usados em prol de um "amor à verdade" que desgastaria seu impacto de signo.

3. Amar é dar o que não se tem
No ensino de Lacan, amar se conjuga primeiramente como demandar, dentro da dimensão simbólica, e comodar, oferecer-se como o objeto faltante.
"Amar é dar o que não se tem" é enunciado por Lacan pela primeira vez em 1957, e será repetido inúmeras vezes.
Primeiramente Lacan designa assim o falo, "o que não se tem", mas é o objeto a que será finalmente assim achado e fundamentalmente assim designado. A localizacão do objeto a permite que Lacan precise o que se trata no amor, no laço com o outro e, obviamente, na transferência, permitindo que a verdade dessa troca simbólica abrande a dimensão de mentira imaginária, e na medida em que o que falta ao simbólico e ao imaginário permite, num segundo tempo, apontar e localizar o real como diz-mensão.
"Amar é dar o que não se tem" condensa também os desenvolvimentos de Lacan no Seminário 8 sobre a transferência, quando apresenta a famosa "metáfora do amor", ou seja, quando o sentido do desejo produz a significação do amor: o amante, fazendo-se de objeto amado para encontrar, naquilo que ele se faz para o outro, a significação (fantasmática) de seu desejo.
Podemos facilmente interpretar o amor, tal como as letras (poesia, literatura) o testemunham, e a transferência, tal como a vetoriza as análises, a partir desse enunciado "amar é dar o que não se tem". Por exemplo, a linda frase de Breton em L'amour fou, "é realmente como se eu tivesse me perdido e que viessem de repente me dar notícias de mim mesmo",7 (BRETON, 1937/1976) poderia se reduzir a esse diagnóstico: amar é dar o que não se tem (para alguém que não quer isso, completa Lacan no Seminário 12).
É no seminário ...Ou pire, em 1972, que acontece uma ruptura na repetição do aforismo. Lacan resgatando o que tinha deixado em espera desde "Função e Campo"8 no capítulo antecipatório "As ressonâncias da interpretação", o amor passa a ser lido a partir da letra de a-muro, como signo.
"Eu te demando de recusar o que te ofereço porque não é isso" (LACAN, 1971-1972, p. 81), reinterpreta o primeiro aforismo "amar é dar o que não se tem", e anuncia a letra que está no a-muro: "entre o homem e a mulher há o a-muro" (Ibid.).
Este corte no ensino de Lacan implica o amor na estrutura de uma maneira bem diferente. É notável que se aponte para as ressonâncias d'alíngua, e que aqui, precisamente, se abra a questão do nó borromeano (é em torno de um comentário desta frase que Lacan passa a explorar a topologia borromeana).
A partir daí, o amor é elevado à dignidade de suplência e não mais apenas de enganação, e a sua carta carrega o eco do saber inconsciente d'alíngua, e não apenas uma mera mentira.
O rumo do amor no ensino de Lacan, e seu valor inegável, se enunciará no final, no âmago do título definitivo, decisivo, "L'insu que sait de l'Une-bévue s'aile à mourre".

4. Fazer o amor mais digno
"Pôr em jogo o simbólico e o real que o imaginário aqui une (por isso não podemos largá-lo) e tentar, a partir deles, que fizeram mesmo suas provas no que diz respeito ao saber, aumentar os recursos graças aos quais conseguiremos prescindir dessa tal de relação, para fazer o amor mais digno do que a profusão do palavrório que constitui até hoje" (LACAN, 1974/2003, p. 315).9
A "Nota italiana", 1974, onde se encontra essa sentença, condensa de uma certa forma toda a operação doSeminário 20, cujos inúmeros enunciados inesquecíveis a respeito do amor, deslocam insistentemente a dimensão do Dizer aos quais se referem.
Esse enunciado não anula o que foi dito anteriormente, mas suplementa e aponta para um outro dizer: o enodamento RSI e, mais além, talvez, para a função sinthoma do amor como aquilo que permite o enlace das três dimensões.
O amor, a partir deste momento no ensino de Lacan, não é mais apenas o que procede do sentido simbólico que vetoriza o desejo, nem tão somente a significação que estabiliza o imaginário, numa tentativa mútua de "fazer dois" e fazer "relação sexual".
Nem sentido, nem significação; o amor é signo. Suplência à não relação sexual, pois a não relação é sua provação e seu ponto de partida; não tentar mais fazer relação com as armadilhas do amor e do objeto permite fazer um amor mais digno.
O amor mais digno é signo do Um, do Y a d'l'Un, que o saber inconsciente d'alíngua precipita em letra no a-muro.
"...a única coisa que se pode fazer de um pouco sério, a letra/carta de amor" (LACAN, 1972-1973, p. 113).10A carta de amor permite que se conte Um, que se tire seriamente as consequências da singularidade do Um sozinho que não faz dois, nem quando faz amor, e que um a um o que faz diferença se conta.
Podemos chamar essa solidão de narcisismo? Talvez sim, mas um narcisismo que inclui o real, que precisa de três para fazer Um.
A escrita e o amor, ambos responsáveis para que "o que não cessa de não se escrever" deixe rastros sem vergonha, da "impudência do Dizer" (LACAN, 1973-1974, 11/06/1974): repercussão da ausência de sentido da letra mot trou no indesens do texto, a indecência fora de sentido do corpo do texto, entremeado com o sexo.
"Escrever, amar. Vejo que isso se vive na mesma incógnita. No mesmo desafio do conhecimento, na tensão do desespero" (DURAS, 1987, p. 89),11concluímos comMarguerite Duras.

Referências
BRETON, André (1937). L'amour fou. Paris: Gallimard, Folio, 1976.
DURAS, Marguerite (1964). Le ravissement de Lol V. Stein. Paris: Gallimard.
__________. (1987). La Vie matérielle. Paris: P.O.L, 1987.
FREUD, Sigmund (1915). "Observações sobre o amor transferencial" In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud — Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d.
__________. (1915). "Observations sur l'amour de transfert" In: La technique psychanalytique. Paris: PUF, 1953.
LACAN, Jacques (1971-1972). Le Séminaire — Livre 19 — ...ou pire. Paris: Seuil, 2011.
__________. (1972). "O aturdito" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
__________. (1972-1973). O seminário — Livro XX — Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
__________. (1973). "Prefacio à edição alemã dos Escritos" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
__________. (1973-1974). Le Séminaire — Livre 21 — Les non dupes errent, inédito (Aula de 11/06/1074).
__________. (1974). "Nota italiana" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
PONGE, Francis (1965). Pour un Malherbe. Paris: Gallimard, 1965.


Endereço para correspondência
E-mail: dfingermann@gmail.com

Recebido: 02/03/2015
Aprovado: 21/04/2015



* Psicanalista, AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — Brasil. Engajada local, nacional e internacionalmente na transmissão da psicanálise e na formação do psicanalista. É autora de múltiplos artigos publicados em livros e revistas nacionais e internacionais, assim como do livro Por causa do pior (Illuminuras, 2005), em coautoria com Mauro Mendes Dias, e organizadora do livro Os paradoxos da repetição (AnnaBlume, 2014).
1 Litterasura em referência ao texto de Lacan "Lituraterre" e "litterature" que em francês ressoa como litter= lixo, em inglês, e rature, em português, rasura.
2 Reson, termo de Francis Ponge (1965), cujo parti pris poético foi dar às palavras uma "espessura quase igual" à das coisas, "dar conta da profundidade substancial do mundo. Em vez de se deter na significação que veicula habitualmente o nome da coisa", Ponge a faz balançar "literalmente e em todos os sentidos", voltando à sua etimologia, decompondo, associando-a a outras palavras vizinhas pelo som ou pelo sentido".
3 Troumatismo: Lacan escreve o traumatismo com a palavra trou, isto é, furo.
4 Moterialidade: para falar da matéria do parlêtre, Lacan escreve moterialidade, ou seja, a materialidade da palavra.
5 No original: "(...) Un mot trou creusé en son centre d'un trou, de ce trou où tous les autres mots auraient du être enterrés. On n'aurait pas pu le dire, mais on aurait pu le faire résonner, immense, sans fin, un gong vide".
6 Referência ao Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo.
7 No original: "(...) C'est vraiment comme si je m'étais perdu et qu'on vînt tout à coup me donner de mes nouvelles".
8 Antoine Tudal (Paris en l'an 2000) apud Jacques Lacan In: Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 289."Entre l'homme et l'amour, Il y a la femme. Entre l'homme et la femme, Il y a un monde. Entre l'homme et le monde, Il y a un mur".
9 No original: "(...) Mettre à contribution le symbolique et le réel qu'ici l'imaginaire noue (c'est pourquoi on ne peut le laisser tomber) et de tenter, à partir d'eux, qui tout de même ont fait leurs preuves dans le savoir, d'agrandir les ressources grâce à quoi ce fâcheux rapport, on parviendrait à s'en passer pour faire l'amour plus digne que le foisonnement de bavardage, qu'il constitue à ce jour".
10 No original: "(...) la seule chose qu'on puisse faire d'un peu sérieux, la lettre d'amour".
11 No original: "Écrire, aimer. Je vois que cela se vit dans le même inconnu. Dans le même défi de la connaissance mise au désespoir".