domingo, 8 de maio de 2016

Transferência, laço e discurso analítico - Stylus (Rio de Janeiro)

DIREÇÃO DO TRATAMENTO: LAÇOS E DESENLACES

Transferência, laço e discurso analítico

Transference, link and analytical discourse


Sol Aparicio*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Collège Psychanalitique de Paris e de Roma
Centre Médico-Psychologique de Cachan (Centre Hospitalier Paul Guiraud-Villejuif)



RESUMO
A questão do laço social se coloca hoje na sociedade com uma particular acuidade. Examinamos aqui a luz que a psicanálise traz a isso, ao estudarmos as elaborações sucessivas do conceito de transferência no ensino de Jacques Lacan.
Palavras-chave: Laço social, Desejo, Transferência, Contratransferência, Sujeito suposto saber, Discurso analítico, Fraternidade de discurso.

ABSTRACT
The question of the social ties arises in todays's society with particular acuity. We examine here the light that psychoanalysis brings to it, as we study the successive elaborations of the concept of transference in the teaching of Jacques Lacan.
Keywords: Social ties, Desire, Countertransference, Subject supposed to know, Analytical discourse, "Discourse brotherhood".



No âmbito dos Colegiados da Clínica Psicanalítica do Campo Lacaniano, trabalhamos um ano inteiro sobre "aquilo que faz laço". É uma questão que o clínico encontra em sua prática cotidiana, no nível do sujeito que se dirige a ele e, claro, essa questão se coloca também hoje, com uma particular acuidade, no nível político.1
É evidente, mas por que não explicitar que, para nós, trata-se de interrogar aquilo que faz laço analiticamente falando, isto é, do ponto de vista da teoria elaborada a partir da experiência psicanalítica.
Se colocarmos a questão para Freud, duas respostas se impõem: a libido e a identificação.
Os laços entre os seres falantes são inicialmente laços libidinais. É a libido que "faz laço". A teoria freudiana da libido é, nesse sentido, uma teoria dos laços. O fato de que um laço existe para alguém supõe que o objeto seja libidinalmente investido. Isso apareceu nitidamente para Freud quando ele estudou o fenômeno de retraimento, de ausência de interesse, observável em alguns sujeitos psicóticos e que ele tentou dar conta da fantasia de fim do mundo. Ele explica isso detalhadamente em "Introdução ao narcisismo" (FREUD, 1914/s.d.), e é algo que muitas vezes observamos clinicamente.
A outra resposta freudiana à questão de saber o que faz laço entre os falantes é a identificação. O texto de referência a esse respeito é mais tardio, trata-se de "Psicologia das massas e análise do eu", de 1921. Lembremos bem sumariamente o ponto central. Freud define a identificação como um "querer ser como" o outro. As identificações possíveis são, bem entendido, múltiplas: com o rival, com o semelhante, com o chefe, com o eu ideal, com o ideal do eu, com o objeto de amor perdido etc. Essencialmente, a identificação é um laço libidinal transformado, um modo de laço que substitui o laço libidinal e que, ao mesmo tempo, o perpetua.
Contudo, não há no ser falante pulsão social, nada o empuxa a fazer comunidade. É por isso que a existência dos laços sociais é uma verdadeira questão. Do que depende a existência dos laços que, para além da célula familiar, estruturam a sociedade e sobre os quais se edifica uma civilização? Da possibilidade para o sujeito de "fazer passar a libido de seus laços infantis para os laços sociais que são enfim desejados" (FREUD, 1924/s.d.). As "grandes instituições" – a religião, o direito, a ética e "todas as formas de vida cívica" – respondem a essa exigência, elas visam obter essa passagem, essa transformação dos laços estabelecidos na primeira infância.
Em Lacan, é inicialmente o desejo, outro nome da libido freudiana, que faz laço. A libido não é nada além da "presença efetiva (...) do desejo" (LACAN, 1964-65/1988, p. 146). Ao que podemos opor o gozo que, por sua vez, não faz laço, muito pelo contrário. O amor faz laço. Não é o caso do sexo. Não me deterei aqui em relação à retomada por Lacan da doutrina freudiana da identificação, que é muito desenvolvida. Em contrapartida, desejo indicar que sua reflexão sobre os laços sociais prossegue para além dos desenvolvimentos freudianos. Ela assume a forma de uma teoria dos discursos, entendidos como modalidades de laço social, que ele desenvolveu a partir de 1969-1970. Encontramos aí ferramentas preciosas para pensar o presente em que vivemos, em particular suas observações sobre aquilo que caracteriza o discurso capitalista. Esse quinto discurso distingue-se dos outros quatro na medida em que ele, justamente, não faz laço social. Ele promove a relação com objetos de consumo, objetos "mais-de-gozar".
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Tendo dito isso à guisa de introdução, restringirei a questão ao âmbito propriamente analítico, me perguntando: o que faz laço entre um analista e um analisante? Quais são as particularidades próprias a esse laço, ao mesmo tempo tão importante e transitório, já que está destinado a ser dissolvido?
Por pouco que se tenha ouvido falar de psicanálise, uma resposta se impõe. O que faz laço entre o analista e o analisante, desde sua descoberta por Freud, é a transferência. A partir daí, várias outras questões relativas ao que se entende por transferência podem surgir, as quais abrem as portas para as diferentes concepções de transferência que os analistas criaram desde Freud, apoiando-se nas definições freudianas.
Partamos do mais simples e comumente admitido: "a transferência é amor". Que seja um amor manifesto, de forma suficientemente forte para provocar o embaraço ou a fuga,2 ou um amor mais nuançado, menos barulhento, podendo passar quase despercebido, há um consenso sobre esse ponto no mundo psicanalítico. Parece-me, todavia, que essa afirmação diz respeito apenas ao laço do analisante com o analista, e que ela silencia a outra parte. Esta é, sem dúvida, uma das razões pelas quais fomos levados a forjar a noção de "contratransferência", a fim de nomear aquilo que acontece com o laço do analista com o analisante, seus afetos e sentimentos. A contratransferência corresponde, assim, à transferência em sua definição sentimental ou afetiva. Desse ponto de vista, transferência e contratransferência seriam as duas vertentes do laço analítico. É o que a perspectiva introduzida por Lacan vai contestar.
Notemos inicialmente que se é verdade que "a transferência é amor" e que se ela se manifesta como tal na prática, no nível dos fenômenos, se é verdade também que ela constitui o "núcleo de nossa experiência",3 sua definição implica, no entanto, uma outra dimensão, um registro diferente daquele do amor. Pois a transferência é amor "que se dirige ao saber". "Aquele a quem suponho o saber, eu o amo" (LACAN, 1972-73/1985, p. 91), resume Lacan. O que, é claro, se verifica fora da análise, mas que foi posto em destaque pela experiência analítica. O amor se dirige ao saber, eis a verdade do amor que a análise revelou.
Não há, portanto, apenas amor no laço transferencial, nele também entra em jogo a relação com o saber.
O saber em questão na transferência analítica não é qualquer um, é claro, é o inconsciente, o saber inconsciente. Lacan insistiu muito sobre a definição do inconsciente como um saber, elaborando a ideia de um saber insabido pelo próprio sujeito, tal como se encontra em Freud. Nos "Estudos sobre a histeria", com relação à paciente que ele chama de Lucy R., por exemplo, encontramos isso. Lucy tendo respondido a uma de suas questões nos termos "Não sabia… ou melhor, não queria saber", Freud (1893-95/s.d.) nota, em uma passagem em que discute o recalque, que há nessas palavras uma perfeita descrição "desse estado singular em que o sujeito sabe tudo sem sabê-lo".
Enquanto saber insabido, o inconsciente é um saber sem sujeito. Coisa difícil de pensar. A maior parte do tempo supõe-se, atribui-se um sujeito a ele, imputa-se a esse sujeito o fato de saber esse saber. É precisamente nisso que consiste o saber transferencial. O sujeito analisante imputa ao analista o fato de saber o que ele mesmo não sabe e que lhe diz respeito. Ele transfere sobre o analista o saber inconsciente. Ele coloca o analista em lugar de sujeito suposto saber (LACAN, 1972/2003, p. 529). Isso dá conta do amor transferencial: "aquele a quem suponho o saber, eu o amo". É a fórmula da transferência na medida em que ela é suportada pelo sujeito suposto saber, que Lacan escreve S.s.S. (voltarei mais tarde a essa escrita).
O sujeito suposto saber é uma função que o analista encarna para o analisante. Mas, ao refletir um pouco a esse respeito, percebe-se facilmente que o analista, no princípio, não sabe nada desse saber que lhe é suposto. Essa ignorância é uma consequência direta daquilo que faz a originalidade da experiência freudiana, que consiste sempre em "tomar um caso em sua singularidade".4 A cada início de análise, o analista tem, uma nova vez, que se haver com um novo saber inconsciente do qual ele não sabe nada. Se bem que para ele, é evidentemente o analisante, a quem ele dá a palavra, que se encontra em lugar de sujeito suposto saber. Lacan pôs isso em evidência no momento em que formalizava o discurso analítico.5
Evidentemente, isso não quer dizer, no entanto, que no laço psicanalítico há uma reciprocidade qualquer. (A reciprocidade, "noção tão cara à divagação psicológica", dizia Lacan [1967/2003]...). Por um lado, a transferência sustenta a tarefa analisante, a associação livre, via pela qual o sujeito confia o saber que lhe é próprio. Por outro lado, o analista escuta de uma forma particular que Freud descrevia como uma atenção flutuante, ele lê o inconsciente e interpreta. Vê-se que a suposição de saber não é da mesma ordem, ela não se situa no mesmo nível em um e em outro caso. O laço transferencial entre um analisante e um analista não tem nada de uma relação de reciprocidade, mesmo que seja um laço que permita falar de um "casal". A análise se pratica "em casal" [en couple], Lacan pôde dizer, é um laço social a dois (LACAN, 1976/2003, p. 567). (Poderíamos, aliás, discutir aquilo que acontece com a reciprocidade no laço de casal).
Nas diversas etapas de seu ensino, Lacan trabalhou muito para bem dizer a diferença entre as posições do analisante e do analista. Quando, em seu seminário de 1967-68 sobre "O ato analítico", ele fala da tarefaanalisante, ele situa o ato do lado do analista. Quando, tanto no início quanto em um seminário tardio, ele põe em destaque a fala do lado analisante, ele distingue o dito do lado analista. O analisante fala, o analista diz, e seu dito tem uma função de corte, ele corta.
O destaque dado por Lacan a essa dissimetria, que exclui do laço analítico a reciprocidade e vai de encontro a uma concepção desse laço em termos de relação dual, é muito especialmente marcado no seminário consagrado à transferência em 1960-61, cujo título sublinhava isso logo de início, a disparidade: "A transferência em sua disparidade subjetiva". Não se trata de uma simples dissimetria entre os sujeitos, explicava então Lacan, é preciso poder dizer "aquilo que a transferência contém de essencialmente ímpar". É por isso que ele escolhe a palavra "disparidade".
Havia nesse título a afirmação de dois fatos. De um lado, a transferência é uma, uma coisa só, já que ela implica o analista. Lacan salientará isso na sequência, a transferência "é um fenômeno em que estão incluídos juntos o sujeito e o psicanalista". Isso quer dizer que não precisamos da noção de contratransferência para dizer a parte do analista na experiência. Sabemos hoje, é o "desejo do analista" que vem dizer o que acontece com a implicação do analista na transferência. É justamente no Seminário sobre A transferência que Lacan evoca isso pela primeira vez. Por outro lado, salientar a disparidade subjetiva da transferência era contradizer uma falsa ideia induzida pela noção de intersubjetividade que Lacan havia inicialmente colocado em destaque como dimensão própria à fala. A intersubjetividade não pode "por si só fornecer o quadro no qual se inscreve o fenômeno (de transferência)", diz ele aqui. Mais tarde, ele colocará em evidência que "a transferência por si só cria uma objeção à intersubjetividade" (LACAN, 1967b/2003, p. 252).
Lacan vai aprofundar essa disparidade subjetiva até mostrar que, na verdade, há apenas um sujeito em jogo na experiência analítica, e esse sujeito é "subvertido". Seu parceiro não é sujeito, ele não intervém na experiência senão como objeto, um objeto "ativo". A subjetividade do analista está fora de jogo, ela não entra em consideração. Servindo-se da comparação da análise com uma partida de bridge, Lacan dizia que no bridgeanalítico o único lugar possível para os sentimentos do analista era o do morto, sem o qual "o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz" (LACAN, 1958/1998, p. 595). O analista tem a responsabilidade da direção da cura e, para isso, é preciso que ele tenha uma forma de abnegação. É o termo que Lacan emprega para qualificar a posição do analista nessa época,6 uma posição de abnegação é requerida da parte do analista pela e para a experiência.
Paralelamente a essa crítica da intersubjetividade, abre-se, em A transferência, a reflexão sobre o desejo do qual temos, sem dúvida, dificuldade em mensurar a novidade. A transferência nunca havia sido abordada sob esse ângulo, nessa perspectiva. O próprio Lacan realça isso: sua proposta do ano é de "colocar no ponto máximo (...) a função do desejo não apenas no analisado (pois ele já havia dedicado um ano de seminário ao desejo, O desejo e sua interpretação), mas essencialmente no analista" (LACAN, 1960-61/1992, p. 174). Ele inaugura, então, em 1960, uma interrogação sobre aquilo que ocorre com o desejo no analista ou, para dizer melhor, sobre a função do desejo do analista na cura. Daí vem o grande interesse que para ele tem o comentário de O banquete, de Platão, que só trata disso, do eros.
Pois a teoria do amor que podemos encontrar nesse diálogo socrático traz, ao mesmo tempo, muitos elementos. Ela distingue nitidamente as posições do amado e do amante, éroménos e érastés. Ela destaca a importância da passagem de uma posição para a outra, o objeto amado torna-se sujeito desejante. E ela revela o lugar central ocupado pela falta: de um lado, pela falta que é a agalma, o objeto supostamente precioso que o amado possui e que o torna desejável, mas que revela não ser nada; e, por outro lado, pela falta de saber com relação a essa falta. O amado não sabe o que tem, assim como o amante não sabe aquilo que lhe falta, e aquilo que falta a um não corresponde àquilo que o outro tem. Disparidade de posições, portanto. Se é um casal, não é, porém, um par. É um casal ímpar!
Lacan utiliza, então, o esquema dessa metáfora do amor, que extrai pacientemente no decorrer de dez encontros de comentário, para dar conta desses fenômenos transferenciais por vezes espantosos, que podem se apresentar desde o princípio de uma análise. Pelo simples interesse e atenção que damos, o analisante encontra-se no lugar de éroménos. Mas o objeto que ele demanda, o objeto faltante que ele desconhece encontra-se no Outro – é por isso que o analisante é "virtualmente constituído como érastés". Aí surge o amor como uma revelação do desejo. E nesse ponto preciso coloca-se para o psicanalista a questão de saber como responder a um amor assim.
Lacan formula isso assim: "Ali se coloca a questão do desejo do analista e até um certo ponto de sua responsabilidade". É preciso que o analista "saiba certas coisas", que ele saiba certas coisas sobre o desejo. A verdadeira questão em jogo no manejo da transferência não é saber que uso o analista pode fazer ou não de seus eventuais sentimentos, mas de saber qual pode ser a função do desejo no amor, já que há amor na transferência.
"Pelo simples fato de que há transferência", o analista encontra-se "na posição de ser aquele que contém oagalma, o objeto fundamental de que se trata na análise". Ele está inevitavelmente implicado aí. É um "efeito irredutível da situação de transferência" que não necessita de nenhuma referência ou contratransferência. "O lugar do objeto a, do agalma na relação de desejo" determina, assim, uma topologia graças à qual os fenômenos podem ser situados corretamente. É a mesma topologia que se encontra na referência ao sujeito suposto saber. Lacan se apoia, a cada vez, sobre a estrutura da experiência analítica, ele tira as consequências das particularidades do dispositivo inventado por Freud, no qual analista e analisante ocupam lugares bem distintos.
Lacan havia inicialmente falado de abnegação para dizer qual deve ser a posição do analista diante do fenômeno de transferência. Ele volta à questão mais tarde, formalizando-a, na ocasião de algumas observações sobre a contratransferência, talvez as últimas, feitas em seu seminário sobre o ato analítico.7 Ao lembrar-se de Stendhal, ele fala então dos afetos de gosto e de estima, já que "não há apenas narcisismo e amor entre os seres humanos", em um encontro há também "algo que se chama você me agrada". É algo inexprimível "que dá suporte à realidade do outro", uma certa dosagem de gosto e de estima que faz com que "isso ressoe" para vocês e se traduza por meio do "você me agrada" – ou seu contrário "você me desagrada". Isso corresponde ao "suporte que assume o sujeito de a e de i(a)". Pois bem, o analista se define da extração dessa dimensão, ele é aquele que é capaz de "não se deixar afetar por isso" em sua relação com o analisante. Isso se torna possível por meio da operação analítica, quando a tarefa analisante está acabada. O analista estará então em condições "de ver apenas o ponto em que o sujeito está nessa tarefa". Pelo contrário, fazer a contratransferência entrar em jogo consiste em fazer lugar ao "você me agrada" ou ao "você me desagrada" – a deixar, portanto, se introduzir no laço analítico aquilo que é da ordem dos sentimentos.
É interessante notar que a extração da dimensão do "você me agrada" se aplica não somente àquilo que pode despertar no analista "a realidade do outro" que é o analisante, mas também àquilo que poderíamos chamar de a realidade que o cerca, o estado do discurso presente. Assim, quando faz referência mais tarde à exploração capitalista, Lacan comenta: "é algo que desagrada". Este é o princípio da agitação revolucionária, "há um ponto em que as coisas desagradam". E ele insiste, então, naquilo que é a posição do analista: "no campo do fazer que ele inaugura por seu ato, não há lugar para o que quer que seja que lhe desagrade, nem também que lhe agrade. Se ele deu lugar a isso, ele sai da posição.8 Ele sai do ato, ele deixa sua posição de analista. Isso não significa, acrescenta Lacan, que o analista não tenha sua palavra a dizer, aliás. É claro, não? Trata-se daquilo que é exigível do analista ali onde ele opera como tal, no âmbito da análise.
Podemos perceber, assim, desde o comentário de O banquete, como Lacan poderá ser conduzido mais tarde, em 1973, a evocar o laço entre o analisante e o analista em termos precisos que têm um valor de definição, sem no entanto falar explicitamente de transferência. Penso em uma frase bem conhecida de Televisão: "O discurso que digo analítico é justamente o laço social determinado pela prática de uma análise".
Desse ponto de vista, o que faz laço entre o analisante e o analista é esse discurso. É claro que a transferência está aí presente, ela sempre constitui o núcleo central da experiência, a prática de uma análise pressupõe isso. Mas considerando-se o laço de transferência tal como Lacan faz nos anos 1970, isto é, levando em conta o fato de que a experiência analítica tem uma estrutura de discurso, a transferência encontra-se em alguma medida reduzida, definida segundo as funções do discurso.
A escrita do sujeito suposto saber – "eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece com a transferência" (LACAN, 1967b/2003, p. 253) – com as três letras S.s.S., põe em relevo uma relação entre dois termos, o sujeito e o saber. Pode-se considerar que ela precede a escrita dos matemas dos discursos que escrevem relações entre quatro termos da álgebra lacaniana, cada um deles designando uma das quatro funções do discurso: o sujeito, o significante mestre, o saber e o objeto mais-de-gozar.
A elaboração dos discursos como laços sociais fundamentais estende-se por diversos anos de seminário, desde 1969 até 1974. Lacan (1973-74/inédito, lição de 11/12/1973) afirma, então, que entre os seres falantes não há "outro laço senão o laço de discurso". O laço de discurso "confirma ser tudo aquilo que existe de laço entre os seres falantes". E acrescenta: "Isso não quer dizer que não se imagina outra coisa". Há laços que imaginamos e há aquilo que estrutura realmente esses laços.
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A forma adequada de pensar o laço analítico, espero ter conseguido fazê-los perceber, ocupou Lacan em todo o decorrer de seu ensino – desde seu primeiro seminário, no qual ele falava da psicanálise como de uma "relação inter-humana", salientando que não se trata de uma relação entre dois indivíduos, que não há somente dois corpos em presença já que há sempre entre eles esse terceiro elemento fundamental que é a fala – desde, portanto, esse seminário de 1954 até sua definição do laço analítico como discurso. Ele situa, a partir de então, o lugar do analista e sua posição no discurso do analista, referindo ao objeto causa do desejo: "o analista se coloca em posição de representar, de ser o agente, a causa do desejo" (LACAN, 1969-70/1992, p. 168).
Ora, Lacan havia introduzido, em 1972, uma questão relativa não ao lugar ou à posição do analista no discurso, mas o laço do analista com o analisante. Que laço pode ser esse, tendo-se em conta todo o exposto até aqui? É o ponto sobre o qual desejo terminar.
Eis a questão, tal como Lacan a coloca ao terminar seu seminário ... ou pior.9 "O que nos liga àquele com quem embarcamos, ultrapassada a primeira confrontação dos corpos?" – ou seja, depois das entrevistas preliminares. Ele reformula a questão um pouco mais adiante: "O que é que nos liga àquele que se embarca conosco na posição que é a do paciente?" – e corrige na sequência: "aquele a quem inapropriadamente chamamos de nosso paciente".
Embarcar-se não é um verbo qualquer! Uma vez embarcados, é preciso ir adiante, não é possível desembarcar antes de chegar ao porto. É um destino comum partilhado. Qual é, então, a resposta de Lacan? Ela é surpreendente, verdadeiramente nova, sendo ao mesmo tempo coerente com a perspectiva que ele introduziu na consideração do laço analítico: "Somos irmãos de nosso paciente, na medida em que, como ele, somos os filhos do discurso". E há, "no ponto de cultura em que estamos", apenas o discurso analítico que "dá sua presença" a essa palavra, irmão.
O laço analítico seria, assim, uma fraternidade de discurso. Como entender isso? Podemos, claro, dizer que o analista e o analisante são, cada um deles, sujeitos do discurso do Outro que é o inconsciente. Mas não é só isso: a análise vai operar para cada um aquilo que ela já realizou para o outro, o advento do sujeito dividido, dessa "coisa fendida" pelo objeto a. Somos, enquanto tais, filhos do discurso analítico. A expressão faz ressoar aquilo que advém de inédito graças a uma análise. Não é algo glorioso, nem necessariamente feliz, mesmo se puder ser assim. O inédito aqui não é nada além do rastro deixado pela experiência do inconsciente e pelo saber que essa experiência comporta – o que, no fim, faz de cada analisante algo outro, diferente da criança do discurso familiar.

Referências
FREUD, S. (1893-95). "Estudos sobre a histeria" In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud – Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d.
__________. (1914). "Introdução ao narcisismo" In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud – Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d.
__________. (1924). "Uma breve descrição da psicanálise" In: Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud – Edição Eletrônica. Rio de Janeiro: Imago, s/d, v. XIX.
LACAN, J. (1958). "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 591-652.
__________. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
__________. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
__________. (1967a). "O engano do sujeito suposto saber" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 329-340.
__________. (1967b). "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp.
__________. (1967-68). O seminário, livro 15: O ato analítico, inédito.
__________. (1968-69). O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
__________. (1969-70). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
__________. (1971-72). Le séminaire, livre 19: ... ou pire. Paris: Seuil, 2011.
__________. (1972-73). O seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
__________. (1973-74). O seminário, livro 21: Les non-dupes errent, inédito.
__________. (1976). "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 567-569.


Recebido: 16/07/2015
Aprovado: 10/08/2015


Tradução: Cícero Oliveira
Revisão da tradução: Dominique Fingermann
* Psicanalista, trabalha em Paris. AME e membro fundador da EPFCL. Ensinante no Collège Psychanalitique de Paris e de Roma. Consultora no Centre Médico-Psychologique de Cachan (Centre Hospitalier Paul Guiraud-Villejuif). Publica regularmente artigos em revistas de psicanálise.
1 Este texto, no qual foram feitas ligeiras modificações, foi inicialmente publicado no Mensuel da EPFCL no 76 (fevereiro/2013).
2 Cf. Anna O. e Breuer, analista antes do tempo.
3 Expressão de Lacan, cf. O seminário, livro 8: A transferência em sua disparidade subjetiva..., p. 12.
4 Cf. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud, em que Lacan destaca que é nisso que reside a absoluta originalidade da experiência freudiana, e já critica a concepção dual da relação analítica, assim como o recurso aos sentimentos "sempre recíprocos".
5 V. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, caps. 2 e 3.
6 Cf. "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" e O seminário, livro 8: A transferência.
7 V. O seminário, livro 15: O ato analítico (1967-68), inédito, lição de 07/02/1968.
8 Cf. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro, fim da lição XII.
9 V. O seminário, livro 19: ... ou pior, última lição (21/06/1972).
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