sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Minha leitura...e interrogações: O Inconsciente (1915) - S.Freud.

Parte I

O que justifica afirmar a existência do inconsciente:


O conceito de Inconsciente (Unbewusste) é ponto central da teoria psicanalítica, a sua pedra angular, na qual se concentra toda a descoberta freudiana.

Quando se fala em aparelho psíquico em Freud, a ideia é sempre de uma localidade virtual e não anatômica. 

Naquele momento, ou até hoje temos a noção do ser humano como  indivíduo  que se refere àquilo que não pode ser dividido: indivíduo como unidade. Algo que seria "Senhor de si e de seus atos". 

No consultório, ou mesmo na vida diária, vemos que na maioria das vezes não "mandamos" em nossa própria vida. Nos vemos angustiados, inibidos, ou assustados frente a algo que racionalmente nada nos causaria. Ou por vezes, evitamos que aconteça a nossa própria realização.  Na hora H de realizar: esquecemos o compromisso, nos atrasamos, falamos aquilo que não era para ser dito, enfim damos um jeito da "coisa" não acontecer. Ou aquele pensamento que surge do nada:: "para que tentar, se não vou conseguir mesmo" ou "é melhor nem ir, porque nada vai acontecer mesmo."

  
"Todos esses atos conscientes permaneceriam incoerentes e incompreensíveis se insistíssemos na alegação de que só por intermédio da consciência podemos experienciar os atos psíquicos que ocorrem dentro de nós. Entretanto, se pudermos inferir a existência de atos inconscientes e interpolarmos entre esses atos conscientes os atos inconscientes, então tudo isso que antes parecia incompreensível adquirirá um novo ordenamento compreensível e demonstrável. Ora, tal ganho de sentido e coerência por si só justificaria que avançássemos além da experiência imediata. Mas, se, além disso, pudermos construir um procedimento  - fundado na suposição de um inconsciente - capaz de influenciar eficazmente o curso dos processos conscientes, teremos então, uma prova irrefutável da existência do inconsciente. Uma prova assim, não só nos permitiria refutar o argumento de que tudo que ocorre na psique necessariamente é do conhecimento do nosso consciente, como também afirmar que essa exigência não passa de uma pretensão insustentável e arrogante."    S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

A noção de inconsciente em Freud traz a ideia do sujeito dividido. Existe algo em nós que nos causa: algo que é estranho e familiar. Estranho porque nos surpreende, mas é familiar porque vem de nós, Temos pensamentos, atos, repetições que parecem "sem sentido", algo que ultrapassa o conhecimento que temos de nós mesmos.  Como se fosse possível conhecer a nós mesmos integralmente. De alguma forma esses atos sem sentido nos dão notícia da nossa divisão. 



Aquilo que é consciente hoje, na realidade permaneceu  no inconsciente em estado de latência por longo período. Qual dispositivo que aciona este conteúdo latente para se tornar consciente manifesto? Não há um dispositivo que promova a relação entre ics e cs, uma instância tem pontos de contato com a outra.  "A respeito de alguns desses estados latentes, pode-se afirmar que a única coisa que os distingue dos estados conscientes é justamente a ausência da consciência." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Qual a problemática envolta nesta primeira parte do texto "O Inconsciente (1915)"

Como comprovar a existência do inconsciente ou de uma teoria, quando não há algo que comprove de fato sua existência? O aparelho psíquico é virtual, não há uma área anatômica que comprove sua existência. O inconsciente só é comprovável pelos seus efeitos,

Freud tenta tirar de cena a noção de que a consciência é quem "comanda" o aparelho psíquico, ou que consciência e aparelho psíquico seriam sinônimos.

Freud reivindica não só a existência do inconsciente, mas principalmente a prevalência do inconsciente no aparelho psíquico, sendo a consciência uma parte menor, mas não menos importante.. 

Pode ser uma pergunta banal para quem estuda psicanálise há tanto tempo, mas como o inconsciente influencia nossos atos conscientes, no nosso dia a dia, por vezes, nos restringindo ou inibindo? 






Parte II
Os múltiplos sentidos do inconsciente e o ponto de vista tópico:


No inconsciente existem ideias  em estados de latência mas passíveis de advir a consciência e  ideias em estados de latência e recalcadas, essas contrastam do restante dos processos conscientes.  


Não é porque uma ideia esta em estado de latência no inconsciente que não é acessível a consciência. Muito pelo contrário, há contato entre as instâncias: ics e pcs/cs. O que impede uma ideia de advir é o seu conteúdo, que está relacionado a pulsão(meta).  Uma ideia latente e recalcada que contrasta do processo consciente, causaria aumento de tensão no aparelho psíquico e para dirimir este efeito existe a censura entre os sistemas ics e pcs/cs.Se a ideia em estado de latência for rejeitada pela censura, a mesma retorna ao inconsciente permanecendo ali, como conteúdo recalcado.

Interessante pensarmos as três instâncias ou duas instâncias  ICS --PCS/CS como uma engrenagem, onde uma não funcionaria sem a outra. Didaticamente é possível separar, mas as instâncias atuam conjuntamente, mesmo que de maneira contraditória e 
conflituosa. 

"(,,,) Mas passemos agora para definições positivas dos conceitos: a psicanálise afirma que um ato psíquico passa, em geral, por duas fases e que entre ambas há uma espécie de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico se encontra em estado inconsciente e pertence ao sistema Ics; se no teste ele for rejeitado pela censura, a passagem para a segunda fase ser-lhe-á interditada(...)"  S.Freud.  O Inconsciente (1915)

Há apenas uma censura entre as duas fases. ( Na parte VI Freud fala da censura Pcs-Cs, entretanto trata-se de algo menos radical)

Neste ponto onde Freud se utiliza do termo teste, podemos pensar na questão do sentido utilizado no título da parte II. O sujeito frente a qualquer elemento do inconsciente - "sem sentido", tenta dar sentido, até porque para passar pela barreira da censura, os elementos inconsciente aparecem de maneira disfarçada. É importante pensarmos neste ponto o lugar do analista em relação a esses elementos inconscientes: o analista na presença de qualquer formação do inconsciente, marca a existência deste, tornando este elemento "estranho" enigmático, e decifrável, fisgando o analisante a buscar um sentido àquele elemento que não tinha sentido e assim novos sentidos virão. 

A ideia quando permanece recalcada continua no inconsciente produzindo efeitos sobre o psiquismo. Essa mesma ideia(representante da pulsão) para tornar-se consciente novamente sera preciso que seja traduzida: serão criados novos textos, daquilo anteriormente recalcado no inconsciente. 


O que ocorre com a ideia que estava em estado de latência no inconsciente e que conseguiu ultrapassar a censura advindo ao Pcs/cs? Serão duas ideias em instâncias diferentes, uma no ics e outra no pcs/cs? ou a ideia desaparecerá do ics e permanecerá somente no pcs/cs?


Freud responde à essa questão:


" A primeira das duas possibilidades a que havíamos aludido, ou seja, que a fase Cs de uma ideia que surge na psique é um novo registro desta, situado em outro lugar, é sem dúvida, a mais grosseira, mas também a mais cômoda. A segunda suposição , a de uma mera mudança funcional de estado, é de antemão a mais provável, embora menos plástica e mais difícil de manipular.. A primeira suposição, que é tópica, implica uma separação tópica dos sistemas Ics e Cs, bem como a possibilidade de que uma ideia possa estar simultaneamente presente em dois lugares do aparato psíquico; e mais que essa ideia, sem a inibição imposta pela censura avance regularmente de uma posição para outra, eventualmente sem perder seu primeiro locus ou registro. Isso pode soar estranho, mas de fato apóia-se em experiências da prática psicanalítica." 
 S.Freud.  O Inconsciente (1915)

Se o conteúdo inconsciente latente e  antes recalcado não desaparece no deslocamento entre os sistemas ics e pcs/cs, Qual o sentido de trazê-lo a tona em análise?  Por que  à medida que o sujeito fala em análise, na presença do analista os sintomas se desenlaçam já que as ideias permanecem no inconsciente? 






Parte III
Sentimentos Inconscientes



"Uma pulsão nunca pode tornar-se objeto da consciência, isto só é possível para a ideia (Vortellung) que representa. essa pulsão na psique. Mas em rigor, também no inconsciente essa pulsão só pode ser representada por uma ideia."

Muitas vezes procuramos uma análise porque nos sentimos tristes, culpados, magoados e nem temos um porquê para tanto...Será que esses sentimentos ou sensações podem ser inconscientes?

As ideias (representantes pulsionais) se deslocam entre os sistemas Ics e Pcs/Cs. Existe impulsos pulsionais constituídos de sentimentos e sensações? Se existem, o que ocorre com eles? Também se deslocam entre essas instâncias? 

Uma pulsão nunca se dá por si mesma, nem a nível consciente, nem a nível inconsciente; ela só é conhecida pelos seus representantes: o representante ideativo (vorstellung) e o afeto (affekt).

Os afetos e sentimentos são a mesma coisa? Não; Os sentimentos e sensações:   Amor, ódio, raiva, medo e culpa,  Já o afeto é a expressão qualitativa da quantidade de energia pulsional. Afetos correspondem a processos de descarga, cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos. 

Os destinos dos afetos e dos representantes ideativos são diferentes. Os afetos não podem ser recalcados. Portanto não se pode falar em afeto inconsciente; os afetos são sentidos a nível consciente, embora não possamos determinar a origem do afeto ao sentir suas manifestações. Os representantes ideativos são traços de memória.

Por que não podem ocorrer traços de memória afetivos? 

"O afeto não pode ser recalcado (não pertence ao sistema inconsciente), apesar de sofrer as vicissitudes do recalque: o afeto pode permanecer; ser transformado (principalmente em angústia); ou ser suprimido. Suprimir o desenvolvimento do afeto constitui a verdadeira finalidade do recalque e que seu trabalho ficará incompleto se essa finalidade não for alcançada." 

recalcamento provoca uma ruptura entre o afeto e a ideia a qual ele pertence, e cada um deles passam por vicissitudes diversas.

Quais os caminhos que os afetos percorrem? Se os afetos são expressão qualitativa e quantitativa de libido, os sentimentos como: amor, ódio, magoa, inveja são nomeados ou sentidos pelos sistemas Pcs/Cs?  





Parte IV
Tópica e dinâmica do recalque

A proposta desta parte é detalhar o processo de recalque, cuja essência não é aniquilar determinada ideia (Vorstellung) que representa uma pulsão, mas  impedir que essa ideia se torne consciente.

"Até este ponto, concluímos que o recalque é essencialmente um processo que ocorre na fronteira entre os sistemas Ics e Pcs(Cs) e que ele opera sobre as ideias que ai se encontram Podemos agora tentar descrever esse processo de forma mais detalhada. Trata-se necessariamente de uma retirada de carga de investimento." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Freud em seguida se indaga: a qual sistema essa retirada de carga de investimento pertence Ics ou Pcs/Cs?  No inconsciente a ideia mantém sua capacidade de ação, ou seja, sua carga de investimento é mantida, portanto,foi  no sistema Pcs/Cs que essa retirada de carga ocorreu. 

Freud cita três resultados nesta retirada de investimento: "a ideia fica esvaziada de sua energia,  ou permanece no inconsciente com a carga de energia investida ou ainda uma substituição da carga pré consciente de investimento à uma carga de investimento do inconsciente."  S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

"Ao lançarmos essas hipóteses, acabamos por inserir implicitamente - quase que de forma involuntária - a suposição de que a passagem do sistema ics para outro situado próximo a ele não se dá por meio de um novo registro ou inscrição, mas por uma mudança de estado, uma transformação na carga de investimento."   S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Qual o efeito da retirada de carga de investimento de uma determinada ideia no pcs/cs? 

Se o recalque originário  serve como força de atração que puxa as  ideias para o inconsciente e se a ideia permanece investida libidinalmente no inconsciente. Como explicar o Não deslocamento desta ideia ao pré consciente no recalque originário, ou mesmo, como explicar a tentativa de deslocamento somente a posteriori, ou seja, quando há o recalque propriamente dito? 

Resposta de Freud a indagação acima:

"(...) A única hipótese plausível é imaginarmos que exista um contra-investimento de carga  por meio do qual o sistema pré consciente se protege da pressão de retorno ao consciente exercida pela ideia (Vorstellung)."  S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Aquilo que garante o recalque originário é justamente o dispêndio de energia no Ics e o contra investimento de carga que advém do Pcs, No recalque secundário, existe outro mecanismo a ser acrescentado: no Pcs ocorre a retirada de carga de investimento da ideia. 

Freud diz ainda: " É bem possível que essa carga de investimento retirada da ideia seja então utilizada para servir de contra-investimento de carga." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 


A descrição do processo psíquico compreende três aspectos metapsicológico: dinâmico, econômico e tópico. 

Através da histeria de Angústia Freud demonstra o funcionamento do recalque articulando-o aos aspectos: tópico (ics e pcs/cs) e econômico(aumento e diminuição da excitação):

Primeira fase: A manifestação de um medo (Angst) que o sujeito não sabe a que atribuir. 


1. Uma manifestação de cunho amoroso (liebesregung) que brota no inconsciente e que tenta  forçar passagem ao Pcs. (manifestação de cunho amoroso - aumento de excitação)


2. Neste instante, uma carga de investimento  advinda do Pcs direciona-se à iniciativa amorosa, como forma de contra investimento. (Propósito de diminuição da excitação)

3. A ideia "original" no pcs  retrai-se diante deste contra investimento - numa tentativa de fuga.  

4. A carga de investimento libidinal inconsciente(pulsão) presente na ideia  que foi rejeitada, não encontrando uma ideia análoga no pcs para que  seja veiculada,  acaba sendo descarregada, irrompendo na forma de medo. 

Segunda fase: A repetição do mesmo processo por algumas vezes - faz com que o psiquismo crie outras maneiras de lidar com esse tipo de medo, até porque isso vai se tornando insustentável ao sujeito.

O trabalho psíquico então consistirá em lidar com este tão indesejado desencadeamento de medo. 



A carga de investimento libidinal inconsciente(pulsão) direciona-se para uma  ideia substitutiva  presente na cadeia associativa, mas distante da ideia, o suficiente para escapar à ação do recalque. - isso ocorre por deslocamento

O medo não é inibido, mas agora pode ser nomeado/representado - com o surgimento no Cs de uma ideia ou representação substituta - racionalização do medo - motivo/sentido. 


Essa ideia substitutiva passou a ter no Cs/pcs o objetivo de contra-investimento de carga, protegendo contra a invasão da ideia recalcada. Essa ideia substitutiva torna-se o ponto de partida para uma liberação desimpedida do afeto do medo

Exemplo citado por Freud:Uma criança com determinada fobia de algum animal, o medo advirá quando:


  • Um movimento do amor recalcado se intensificar, isso ocorre na transição entre o Ics/Pcs - Intensificação da carga de investimento libidinal.
  • Quando percebe a presença do animal que provoca medo, Cs - nomeável - liberação do medo.
O sistema consciente se amplia, criando nomes, sentidos, repertórios para o medo.Já  a excitabilidade oriundas de fontes internas vão ficando em segundo plano. A tendência é o aumento progressivo da fobia.  O medo de animal(exemplo acima) tende a aumentar porque este é "alimentado" pela fonte pulsional. 

"Talvez, ao final, a criança se comporte como se nem possuísse inclinação alguma em relação ao pai, como se tivesse se libertado dele totalmente e como se tivesse mesmo medo do animal. Contudo, apesar de cada vez mais parecer tratar-se somente do medo referente a um animal, esse medo continua a ser alimentado pela fonte pulsional inconsciente. Ele é grande demais e refratário à influência emanada do sistema Cs para não perceber sua origem no sistema inconsciente." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Terceira fase: A ação do  recalque ainda não terminou , o próximo passo é inibir a ação do medo que passou a irradiar-se na ideia substitutiva. Como assim?  

Na cadeia associativa a qual a ideia substitutiva faz parte existe uma zona de alta excitabilidade. Em qualquer lugar desta cadeia que houver  qualquer excitação, haverá também o desencadeamento do medo e a tentativa de inibição através do contra investimento, Tudo isso serve de proteção contra excitações que chegam à ideia substitutiva. Quando essas excitações vem de fora através das percepções (sensações, sentidos) a proteção é eficiente, já  as excitações vindas do interior(impulsos pulsionais) não existe proteção. 

"Na realidade, a cada aumento de excitação pulsional, será preciso deslocar um pouco mais para fora essa muralha protetora formada em torno da ideia substitutiva. Toda essa construção psíquica, que de forma análoga também é produzida nas outras neuroses, leva o nome de fobia. Esse processo de fuga de carga de investimento  consciente, evitando a ideia substitutiva, resultará ao final nas conhecidas evitações, renúncias e proibições a partir das quais caracterizamos uma histeria de angústia." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

A terceira fase é uma repetição e amplificação no trabalho da segunda fase. 

A carga de excitação oriunda do inconsciente(interna) é "sentida ou percebida" pelo sujeito como algo que vem de fora, como no caso da fobia, o medo do animal por exemplo. Porque quando é algo que vem de fora é possível reagir, ao contrário do que é  interno não existe reação possível. Não tem como fugir de si mesmo. 


 Na histeria de conversão: 

O contra investimento de carga que parte do Cs/Pcs escolhe sobre que parte do representante (vai estar no lugar de algo) pulsional, e onde se concentrará toda a carga de investimento. Diferente da histeria de angústia, Na histeria de conversão ICs e o Pcs/Cs preencherão dupla condição, o local escolhido receberá dupla excitação.  O recalque neste caso será mais fácil de ser sustentado? Sim, pois ambos(ics e pcs/cs) trabalham na mesma direção, só que também ambos trabalham na manutenção do sintoma.

Neurose obsessiva:.

O contra-investimento articula-se como formação reativa* promovendo um primeiro recalque inicial. E sera através dele que mais tarde penetrará e irromperá a ideia recalcada. No caso da neurose obsessiva como na histeria de angústia haverá predominância do contra investimento e não há descarga, diferentemente da neurose de conversão. 

*A formação reativa, um dos mecanismos de defesa descritos por Freud, substitui comportamentos e sentimentos que são diametralmente opostos ao desejo real. A pessoa desenvolve atitudes e modelos de comportamento que estão diretamente opostos aos impulsos subjacentes e que foram recalcados. Trata-se de uma inversão clara e que geralmente não tem consciência do verdadeiro desejo sentido.







Parte V

Características especiais do Sistema Inconsciente




Nesta parte Freud aborda as diferenças entre o Ics e Pcs. 
As características dos processos  inconscientes, não ocorrem nas outras instâncias (Pcs/Cs).

"O núcleo do inconsciente é composto de representantes pulsionais desejosos de escoar sua carga de investimento - em outras palavras, é composto de impulsos de desejo. Contudo, no Ics esses impulsos pulsionais coexistem coordenados entre si, lado a lado, sem que se influenciarem mutuamente, nem se contradizerem. Quando no inconsciente dois impulsos de desejo são ativados ao mesmo tempo  - embora seus objetivos nos possam parecer inconciliáveis - em vez de distanciarem um do outro ou de se anularem mutuamente, comparecem ambos simultaneamente e formam um objetivo intermediário, um acordo de compromisso."  S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

"No Ics tudo que podemos encontrar são conteúdos preenchidos com cargas de investimento que podem ser mais ou menos intensa." e é justamente esta carga de investimento libidinal presente no Ics que proporciona mobilidade maior do que a que ocorre no Pcs. Essa mobilidade afetarão as ideias(representantes da pulsão) no Ics através dos processos de  deslocamento/condensação

Deslocamento - uma ideia ou representação pode passar toda a sua carga de investimento para outra ideia.

Condensação - a ideia ou representação pode apropriar-se da carga de investimento de várias outras ideias.


Um exemplo dos processos de condensação e deslocamento pode ser observado no clássico do cinema  "Cidadão Kane" de Orson Welles.  O filme conta a história de um magnata das comunicações no início do século XX, Charles Fortes Kane. A cena inicial mostra-o em seu leito de morte, sussurrando uma palavra: "Rosebud”. A trama do filme se desenrola com a busca do significado de dessa palavra, tarefa que não é realizada. No entanto, na cena final, o espectador descobre que “Rosebud” é o nome de um trenó que pertencia a Kane em sua infância, como se vê na cena onde ele é levado de sua casa por um tutor. O trenó condensava tudo aquilo que Kane perdera, remetendo à sua infância, a companhia materna, seus casamentos, suas amizades. Como esses elementos, pela sua elevada intensidade psíquica, não podiam ser trabalhados psicologicamente por Kane, o trenó, elemento de baixa intensidade psíquica, simbolizava-os. Ocorreu, assim, o processo de deslocamento de intensidade psíquica.

Tanto o deslocamento quanto a condensação são marcas que caracterizam o processo primário, característico do sistema Ics. No Pcs o predomínio é do processo secundário. 

Os processos que ocorrem no Ics não levam em consideração a realidade, pois estão subordinados ao princípio do prazer, cujo requisito e regulação gira em torno do prazer-desprazer(manutenção da homeostase no aparelho psíquico, ou seja manter a tensão psíquica o mais baixo possível).

Características dos processos inconscientes:
  • Ausência de contradição entre seus conteúdos
  • Ausência de dúvida ou negação
  • Atemporal
  • Mobilidade das cargas de investimento: processo primário - deslocamento e condensação.
  • Substituição da realidade externa pela realidade psíquica
  • São incapazes de existência própria, 
  •  Os processos inconscientes só são reconhecidos a partir do sistema Pcs a partir da regressão, ou seja, os processos inconsciente só são identificáveis quando se encontram nas mesmas condições as quais se encontram os sonhos e as neuroses. 
  • O sistema Pcs encobre prematuramente o sistema  Ics tomando para si o controle das vias de acesso a consciência e à motricidade. 
  • Traços de lembranças Ics  - São as marcas nas quais se fixam as vivências no Ics.
  • O Ics por si só é incapaz de implementar uma ação muscular capaz  de atingir uma meta, excetuando-se os reflexos. 

Características dos processos Pcs:

  • Os processos Pcs/Cs trabalham no sentido de inibir a tendência de descarga inerente às ideias(Vorstellung).
  • Ao Pcs cabe viabilizar o trânsito entre os conteúdos das  ideias, de maneira que ela possam comunicar-se e influenciar-se mutuamente. 
  • Cabe ao sistema Pcs/Cs a tarefa de inserir uma ordem temporal nos conteúdos ideacionais.
  • Inserir censura/várias censuras e submeter os conteúdos ideacionais ao teste de realidade. 
  • O Pcs tem papel importante na memória consciente, que são diferentes dos traços de lembranças inconscientes. 

Parte VI
O trânsito entre os dois sistemas

"Seria um equívoco imaginar que o Ics permanece inativo enquanto o trabalho psíquico todo seria realizado pelo Pcs, isto é, que o Ics seja algo já descartado, um órgão rudimentar, um mero resíduo que restou do processo de desenvolvimento. 
Também seria errôneo supor que o trânsito entre os dois sistemas se limite ao ato do recalque, pelo qual o Pcs lograria jogar no abismo do Ics tudo aquilo que lhe parece incômodo. Pelo contrário, o Ics tem muita vitalidade, é capaz de evolução e mantém uma série de outras relações com o Pcs, entre elas também a de cooperação. Podemos dizer, em síntese, que o Ics continua a atuar através de ramificações, os assim chamados derivados, e mais: que ele é susceptível aos efeitos produzidos pela vida, e capaz tanto de influenciar constantemente o Pcs como de ser influenciado por este."  S.Freud.  O Inconsciente (1915) 



Quanto aos derivados das muções pulsionais Ics que manteriam com o Pcs que funcionam como facilitadores e cooperados ao trânsito entre os sistemas. Esses derivados apesar de serem oriundos do Ics são conciliáveis e utilizam aquisições do sistema Cs, ou seja esses derivados têm transito livre entre os sistemas Ics-Pcs-Cs, apesar de jamais tornarem-se Cs. Segundo Freud sobre os derivados: "Portanto, qualitativamente, eles pertencem ao sistema Pcs, mas efetivamente pertencem ao Ics. Sua origem, é que define seu destino." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Esses  traços  atuam efetivamente. Freud compara os derivados aos mestiços(mistura de raça) que sofrem preconceito, segregados ou discriminados por apresentarem algum mínimo traço de determinada raça. 

"A formação das fantasias das pessoas normais ou neuróticas é análoga a essa mestiçagem, nós reconhecemos tais fantasias como etapas prévias da formação tanto dos sonhos quanto de sintomas; no entanto, mesmo com sua alta organização, permanecem recalcados e, como tais, não podem tornar-se conscientes. Ao se aproximarem da consciência, tais fantasias poderão permanecer inalteradas enquanto não tiverem sido investidas de carga intensa, mas serão rechaçadas assim que a intensidade de investimentos de carga ultrapassar determinado grau. Igualmente bem organizado são os derivados do Ics que denominamos formações substitutivas. Essas formações, porém, logram entrar na esfera da consciência devido a alguma circunstância favorável, como por exemplo, se puderem somar forças com um contra-investimento de carga do Pcs. S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Para que uma formação substituta  advenha ao sistema Pcs/cs  dependerá da carga de intensidade de carga da ideia(representante da pulsão), ou do contra-investimento oriundo do Pcs. 


O que altera a intensidade de carga numa determinada ideia? Neste texto parece que Freud ainda não tem uma resposta para essa questão.


Segunda censura: Pcs - Cs

Grande parte dos processos psíquicos que se apresentam no pcs, na realidade são inconscientes, o que de alguma forma explica a segunda censura colocada por Freud no texto entre os sistemas pcs/cs. 

Na realidade só temos acesso aquilo que é consciente, mas nem tudo do nosso aparelho psíquico é consciente, nem mesmo das nossas percepções ou nosso foco de atenção. As vezes passamos pelo mesmo lugar todos os dias, e num determinado dia percebemos algo jamais visto, mas que sempre esteve lá. De repente queremos comprar determinado carro, ou uma roupa, a sensação é que  a quantidade destes carros aumenta, mas não, o nosso foco de atenção se alterou. 


"Portanto a consciência não mantém uma relação simples nem com os sistemas, nem com o recalque. A verdade é que não apenas o recalcado permanece estranho à consciência, mas também parte das moções que dominam o nosso Eu. Assim, esses elementos que estão no mais forte contraste funcional em relação ao recalcado também permanecem estranhos à consciência. Portanto, se quisermos progredir em direção a uma teoria metapsicológica, teremos de aprender a nos desligar da importância que damos ao sintoma do "estar consciente." " S.Freud.  O Inconsciente (1915) 


Há transito entre os sistemas, apesar de grande parte dos conteúdos são inconscientes. Nem todo o conteúdo Ics é acessível, a acessibilidade dependerá também do Pcs. Existem duas censuras, a primeira é contra o ics e a segunda é contra os derivados situados no Pcs. O que faz uma ideia transitar entre os sistemas, não é a ideia em si, mas a carga de investimento ics e o contra investimento pcs. 


Afinal do que são constituídas essas ideias(representantes da pulsão)?


"No nascedouro da atividade pulsional, há uma comunicação intensa entre os sistemas, como veremos a seguir. Enquanto parte dos processos aqui evocados passa pelo Ics como se estivesse atravessando uma etapa preparatória, para mais adiante alcançar o mais alto desenvolvimento psíquico no Cs, parte é retida no Ics. Contudo, também o Ics é atingido pelas vivências originadas na percepção externa. Em geral, todos os caminhos que seguem do Ics ao Cs estão sujeitos ao bloqueio pelo recalque." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 



Parte VII
Identificando o inconsciente

Freud para identificar o inconsciente utiliza como exemplo as psicoses. Por que será isso?
Nas afecções narcísicas (psicoses) há uma oposição entre o eu - objeto. As neuroses são causadas pelo impedimento no acesso ao objeto. O neurótico renuncia ao suposto objeto real (objeto perdido), entretanto a libido retirada do objeto real retrocede em direção a um objeto recalcado que existe na fantasia


Que objeto é esse que o neurótico se vê impedido? Suposto objeto de satisfação, para sempre perdido, mas buscado a vida inteira do neurótico. Como somos seres pulsionais, não temos um objeto que nos satisfaça completamente. A satisfação através de um objeto da fantasia é algo que funciona como defesa ao desamparo ou angústia? Essa satisfação através de um objeto fantasmático relaciona-se ao sintoma neurótico? Como funciona esse arranjo precário do neurótico? Como articular objeto recalcado, fantasia e neurose? 

"No entanto, o exame mais detalhado do processo de recalque nessas neuroses evidenciou que o investimento de carga no objeto geralmente continua a ser mantido com grande energia, o que nos leva a supor que o investimento de carga no objeto geralmente continua a existir  no sistema ics, apesar do recalque. - ou melhor como consequência dele. " S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Na esquizofrenia (psicose) - a libido retirada do objeto não investe em novos objetos, se recolhe ao Eu. Há uma desistência no investimento de carga no objeto e um restabelecimento de um estado narcísico primitivo, sem objeto. 

"A incapacidade desses pacientes de executar uma transferência - a qual depende da extensão do processo da doença - e a consequente falta de resposta a terapia, assim como sua singular rejeição ao mundo externo, os sinais de haver uma camada de sobreinvestimento de carga aplicada ao próprio Eu e, por fim, sua apatia total, todas essas características clínicas parecem reforçar a suposição de que nesses quadros ocorre uma desistência do sujeito de investir no objeto." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 


Na esquizofrenia há uma alteração na fala, que pode demonstrar a relação eu-objeto e as relações mantidas pela consciência. Por vezes os esquizofrênicos quando falam apresentam um linguageiro "rebuscado" e "floreado". As frases ditas por esses pacientes apresentam certa desorganização estrutural, parece que falta sentido naquilo que é dito. Quanto ao conteúdo, há uma prevalência à  referência ao aos órgãos e as inervações. 


"No caso da esquizofrenia, as palavras são submetidas ao mesmo processo que também se transforma os pensamentos oníricos latentes em imagens oníricas. Trata-se do que chamamos de processo psíquico primário. Neste, as palavras são condensadas e transferem integralmente uma à outra suas cargas de investimento deslocando-as. O processo pode chegar ao ponto de uma única palavra assumir a representação de toda uma cadeia de pensamentos, devido às múltiplas relações que mantém com outros elementos. S.Freud.  O Inconsciente (1915) 


A Representação de objeto transformam-se em representação  de palavra e representação de coisa(Ding). Para entender melhor este processo entre representação de palavra e representação de coisa fui buscar conceitualizar alguns destes termos:



  • O termo 'representação' se refere ao modo de apreensão de um objeto ou fenômeno por parte de um sujeito (ou meio de representação, como o caso de um livro, de uma pintura, etc.), o que significa que para que haja um ato de representação é preciso que haja alguém (ou algo) que representa alguma coisa (não necessariamente algo distinto de si mesmo; no caso do sujeito, é possível falar deste como representando a si mesmo). (objeto)

  • (Pulsão) A representação de palavra traduz uma trama de representações inconscientes. A tradução de  um resto, uma perda, um sentido que escapa. Uma  tentativa de captar algo que, por sua natureza, sempre escapa.
  • Essa representação que se traduz em representação de palavra não remete a uma única representação; remete a uma associação de representações. Nesse sentido, o que pode ser levado à palavra (pré-consciente) é um aspecto dessa trama de representações, o qual se liga a algumas palavras, o fio da meada. Essas representações de coisa sofreram as ações do processo primário, por um complexo jogo com outras representações de coisa, de tal maneira que aquilo que aparece ligado à representação de palavra está desfigurado, como as imagens do sonho, por esses processos.
  • Representação consciente = a representação de coisa + representação de palavra correspondente;Representação inconsciente é somente representação de coisa. 


  1. O sistema Ics contém os investimentos de carga referentes à coisa que faz parte do objeto.  O objeto também apresenta os investimento de carga que contém a  coisa. 
  2.  Pcs surge quando essa representação da coisa ao ser vinculada a representação de palavra recebe uma camada de sobreinvestimento de carga.
  3. Esse sobreinvestimento de carga  - que leva a organização psíquica mais elevada e a possibilidade da substituição do processo primário ao processo secundário.



Nas neuroses de transferência - a tradução da representação de palavra é negada pelo recalque;  pois esta deve continuar associada ao objeto. Ou seja, sempre haverá algo que não poderá ser representado. 


No neurótico a palavra representa qualquer coisa, mas sempre haverá algo que não pode ser representado? E o psicótico, como se utiliza da palavra? coisa=palavra ou palavra como coisa?

As representações de palavras e as representações de coisa provém das percepções sensoriais. Por que as representações de objetos não podem tornar-se conscientes por meio de seus próprios resíduos de percepção? Resposta de Freud: "Provavelmente, a resposta é que o pensamento se dá em sistemas muito distantes dos resíduos originais de percepção, que não retiveram mais nada de suas qualidades e necessitam de um reforço através de novas qualidades para se tornarem conscientes." S.Freud.  O Inconsciente (1915) 

Bom, após a leitura deste texto, alguns pontos ficaram mais obscuros do que antes, principalmente ao que diz respeito as representações de palavra e representações de coisa. A relação do sujeito neurótico e os objetos. A utilização da palavra pelo neurótico e psicótico...Questionamentos importantes....que me faz ter vontade de ler e buscar respostas ou novas interrogações?

P. Adriana

paulaadriana.couto@gmail.com







quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Proposta de ciclo de discussões: Inclusão escolar: da diferença como déficit à diferença como singularidade.

Olá, faço parte de  um grupo de psicanalistas e temos como proposta  articular psicanálise e educação. Nossa pauta neste momento é a  inclusão a partir do tema: DA DIFERENÇA COMO DÉFICIT À DIFERENÇA COMO SINGULARIDADE.

Nosso objetivo é, por meio de discussões e interlocuções, promover um olhar transdisciplinar sobre a questão tão complexa da inclusão escolar. 

Com o intuito de nos conhecermos melhor, psicanalistas e equipe educacional, oferecemos esse primeiro ciclo sem custo adicional, sendo realizado na própria escola.

Contate-nos pelo telefone: 2099-1860 ou 3715-8494 ou pelo e-mail: tecerpsic@gmail.com ou paulaadriana.couto@gmail.com


Inclusão escolar: da diferença como déficit  à diferença como singularidade

Apresentação

Atualmente, vivemos numa sociedade onde a imagem tem lugar privilegiado. Jamais houve um tempo em que a imagem de beleza, juventude e eficiência significasse, por si só, excelência; entretanto, não sem conseqüências, também sofremos de seu inverso: aquele que está fora do padrão é visto como ineficiente e, na sua diferença, é visto como deficitário.
Nossa sociedade busca um ideal por vezes inatingível, calcado na imagem de perfeição, e qualquer imagem que difere deste ideal fica sujeita à segregação.  Concomitantemente a essa ênfase na imagem de perfeição, a ideia da inclusão social é colocada em pauta. Como acolher ideias contraditórias, como promover a inclusão, quando nossa própria sociedade exclui a diferença?
Na escola temos representada a sociedade e sua cultura: ela representa a primeira passagem do universo familiar – espaço privado – para uma convivência coletiva -  espaço público. Neste contexto, a escola não faz parte da sociedade, ela é a própria sociedade.
Atualmente a legislação obriga as escolas a terem professores de ensino regular preparados para ajudar alunos com necessidades especiais a se integrarem nas classes comuns. Ou seja, uma criança portadora de deficiência não deve ter de procurar uma escola especializada. Ela tem direito a cursar instituições comuns, e é dever dos professores elaborar e aplicar atividades que levem em conta as necessidades específicas de cada uma.
Como pensar a inclusão escolar e o convívio com a diferença numa sociedade em que se estabelece que “todas as crianças são iguais perante a lei”? Como sair do impasse entre afirmar que a criança está devidamente incluída no contexto educacional e, por outro lado, afirmar que faltam recursos de estrutura e de formação para realizar tal inclusão? Como sair da impotência que advém da idealização de que todos são iguais? Afinal, o que é inclusão? Inclusão para quê e para quem?
O conceito de inclusão é baseado no conceito de identidade, ou seja, de um conjunto de características que determinam particularmente uma pessoa: nome, data de nascimento, sexo, filiação, impressão digital. Essa identidade limita-se a nomear, classificar, catalogar e qualificar, e é sustentada em parâmetros de medida do sujeito socialmente construído – sujeitos “iguais perante à lei”.
Ora, se a sociedade é constituída na identidade, como pensar a inclusão do diferente dentro dessa igualdade, dessa identidade?
A inclusão, para ser um processo interessante para todos os envolvidos, não pode ser pensada como um processo que coloca um diferente dentro de uma organização constituída na identidade, na igualdade.
Se pensarmos a inclusão sob a perspectiva da identidade haverá apenas  integração, uma adaptação da educação corrente à criança com necessidades especiais, ou seja, normatização de alguém que supostamente apresenta um déficit. Sob este ponto de vista sempre haverá uma ruptura entre aquele que apresenta necessidades especiais e aquele que não apresenta tais necessidades. Como consequência deste ponto de vista - diferença = déficit - é que a criança com necessidades especiais  sempre será vista como aquela que não tem o que oferecer  e que precisa receber compaixão e solidariedade. Ao passo que a inclusão deve ser vista como um processo pelo qual a sociedade e o portador de deficiência procuram adaptar-se mutuamente tendo em vista a equiparação de oportunidades e, consequentemente, uma sociedade para todos.
Como modificar este olhar construído por tantos anos em relação à criança com necessidades especiais?
 A criança com necessidades especiais geralmente recebe um olhar de estranhamento,  de diferença como déficit desde que nasce.  Se a escola conseguir modificar esse olhar, independente do conteúdo formal aprendido, a escola fará toda a diferença na vida da criança.
A instituição escolar, como primeiro representante do espaço público para a família e para a criança, pode e deve oferecer um espaço no qual a criança possa se relacionar com os outros, colocando-se ela mesma em outro lugar, diferente daquele que os pais ou amigos a colocam, favorecendo a construção de sua subjetividade. É nela que cada criança vai experimentar-se “diferente”, diante de outras diferenças, e aí, quem sabe, tornar-se “igual” na diferença.
Como podemos trabalhar nesse sentido? O que a psicanálise tem a dizer da inclusão escolar e a diferença?
O olhar da psicanálise sobre o sujeito e as diferenças é importante no trabalho de inclusão. A diferença de cada um é bem vinda, pois é considerada uma marca, estilo e singularidade. Nossa escuta se dá a partir de sua diferença, à qual chamamos de singularidade. E as intervenções, a partir desse olhar e dessa escuta, é o que permite ao sujeito criar possibilidades de lidar com o sofrimento e mal estar inerente a vida humana.
Enquanto psicanalistas buscamos a diferença na fala de cada um, sua singularidade, sua própria palavra. Saímos do campo do indivíduo, da integração e do todo. Nossa aposta é de que cada um pode construir uma verdade sobre si a partir do Outro (linguagem, cultura, família)  e que há algo a dizer sobre isso.

A exclusão/inclusão é um tema extremamente delicado socialmente: 

·         Quando falamos de exclusão/inclusão lidamos com os nossos próprios medos e estranhamentos ao ser incluídos ou excluídos; 
·         Nosso olhar geralmente é sempre naquilo que falta, ou seja, quando olhamos alguém com necessidades especiais, percebemos as impossibilidades que isso causa e não as possibilidades;
·         A inclusão/exclusão envolve os nossos próprios preconceitos, discriminações e julgamentos.

Discutir esse tema individualmente ou em grupo é uma maneira de colocar a questão em pauta. A possibilidade de reunir o grupo de educadores, ou de pais, e de se por a pensar sobre determinada situação nunca é sem efeitos; abre-se espaço para a circulação da palavra e deslocamentos de representações e significados A possibilidade de falar da impotência, das dificuldades, nomear a angústia que essa situação provoca é um modo que permite direcionar manejos e enfrentar o desafio,  porque não há um caminho previamente estabelecido.  


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CONFERÊNCIA XX - A VIDA SEXUAL DOS SERES HUMANOS

Nesta conferência Freud inicia com a questão: O que é sexual? Será que está relacionado apenas a reprodução ou a obtenção de prazer? Ou são as duas alternativas? E como as pessoas se posicionam frente ao sexo? Segundo Freud, o sexual é geralmente tomado como algo secreto, de que quase nada deve  ser dito.

Numa tentativa de normatizar ou padronizar aquilo que seria sexual, até pelas questões morais que envolviam a sexualidade, principalmente na época em que foi escrito esta conferência  (1916-1917). O sexual seria algo que diria respeito ao corpo, que ocorria a partir da puberdade, onde duas pessoas de sexos opostos teriam um ato sexual, onde a finalidade seria o prazer, mas principalmente a reprodução da espécie. Tudo aquilo que desviasse deste padrão, seria denominado de perversão.

Erotismo anos 20
Freud questiona o conceito de sexo vigente, e subverte o termo perversão: do desvio de padrão moral em relação ao sexo à  perversão presente na infância, com papel fundamental na função sexual no adulto. .

Freud aborda os diversos caminhos da sexualidade no sujeito adulto, que diferem do modelo vigente. Definindo dois grupos:

·         Quando há na pessoa uma mudança de objeto sexual com a finalidade de obter prazer sexual:



Homossexualidade:  no sujeito homossexual  somente as pessoas de seu próprio sexo podem excitar seus desejos sexuais, "Pessoas do outro sexo, e especialmente os órgãos sexuais destas pessoas absolutamente não constituem para eles objeto sexual e, em casos extremos, são objetos de repulsa." S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917)

Essa  modificação de objeto sexual não é considerada por Freud como perversão. O homossexual é aquele que assume posição, enquanto outros sujeitos que vivem os mesmos desejos vivem em conflito com sua homossexualidade latente. 


Outra possibilidade de mudança de objeto sexual:  trata-se da renuncia na união de dois genitais. O investimento é em alguma outra parte ou região do corpo. (Por exemplo, substituem a vulva pela boca ou pelo ânus.) Neste caso, pode ocorrer ainda a repulsa pelo órgão genital do parceiro, "Outros há que, realmente, ainda mantêm os genitais como um objeto - não, porém, por causa da função destes, mas de outras funções em que o genital desempenha um papel, seja por motivos anatômicos, seja por causa de sua proximidade. Neles, constatamos que as funções excretórias, que foram postas de lado como impróprias, durante a educação das crianças, conservam a capacidade de atrair a totalidade do interesse sexual." S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917)


Há quem abandone totalmente o genital como objeto sexual, e tomaram alguma outra parte do corpo como o objeto que desejam e investem sexualmente ( seio de mulher, um pé, ou uma trança de cabelos.) 



Fetichistas: são pessoas que abandonam totalmente qualquer parte do corpo do parceiro. Seu interesse, investimentos e satisfações sexuais giram em torno da presença de determinados objetos (peça de roupa íntima, sapato).  "Ainda mais atrás, nesse séquito, se enfileiram essas pessoas que requerem de fato o objeto total, mas fazem a este exigências muito definidas - estranhas e horríveis exigências - até mesmo a de que esse objeto devesse tornar-se um cadáver indefeso e de que, usando de uma violência criminosa, transformem-no num objeto no qual possam encontrar prazer. Mas basta com essa espécie de horror!" S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917) 

         Quando há na pessoa mudança na finalidade dos desejos sexuais: Ao invés da finalidade do desejo sexual, que seria o ato sexual, ocorre uma transformação, onde a satisfação sexual se dá num ato inicial ou preparatório.



Voyeur: São pessoas cujo desejo consiste em olhar outras pessoas, ou palpá-las, ou espiá-las durante a execução de atos íntimos, ou pessoas que expõem partes do corpo que deveriam estar encobertas, na obscura expectativa de poderem ser recompensadas, serem olhados por esse outro.

Sádicos/masoquistas: Causar sofrimento e tormento a seus objetos lhe satisfaz sexualmente: Nos masoquistas o prazer consiste em sofrer toda espécie de tormentos e humilhações de seu objeto amado, seja simbolicamente, seja na realidade.



A substituição da finalidade pelo simples fantasiar de seus atos.

“Ainda existem outros em que diversas dessas precondições anormais estão unidas e entrelaçadas; e, por fim, devemos nos lembrar de que cada um destes grupos pode ser encontrado sob duas formas: ao lado daqueles que procuram sua satisfação sexual na realidade, estão os que se contentam simplesmente com imaginar essa satisfação, que absolutamente não necessitam de um objeto real, mas podem substituí-lo por suas fantasias.” S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917)

Na prática clínica psicanalítica, Freud cita duas situações relacionadas a sexualidade que são fundamentais no funcionamento psíquico: 

 - Nos neuróticos, os sintomas são substitutos da satisfação sexual 
  
Histeria: qualquer parte do corpo da histérica pode ser investida como um órgão sexual pela via do sintoma. 

"Os sintomas da histeria realmente nos levaram a considerar que os órgãos corporais, além do papel funcional que desempenham, devem ser reconhecidos como possuidores de uma significação sexual (erógena) e que a execução da primeira dessas tarefas é perturbada se a segunda fizer exigências demasiadas. Inúmeras sensações e inervações, que encontramos como sintomas de histeria, em órgãos que não possuem conexão evidente com a sexualidade, revelam-se a nós, assim, como tendo o caráter de realização de impulsos sexuais pervertidos em relação aos quais outros órgãos adquiriram a significação das partes sexuais." S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917)

Para encontrarmos o caminho desta "perversão" na histeria é necessário percorrermos o caminho da interpretação do sintoma, pois a histérica não quer saber disso, sabe somente do mal estar que lhe aflige. Esse dialeto entre corpo erógeno, sexo, e linguagem é inconsciente. 

Neurose obsessiva: existe a pressão de impulsos sexuais sádicos excessivamente intensos, mas que são pervertidos quanto ao seu fim. Os sintomas na neurose obsessiva servem como defesa contra esses desejos sádicos. Portanto há uma luta entre a satisfação e a defesa. Quanto mais há satisfação, mais haverá defesa que aparecem como auto recriminações ao sujeito. Há uma excessiva sexualização no toque, no olhar, que na luta da defesa, retornam como: obsessão por lavar-se, temor de tocar.

Será que é possível distinguir seres humanos que apresentam a sua sexualidade normal e outros que apresentam uma sexualidade "perversa"? Já que mesmo na neurose os caminhos da sexualidade, a obtenção da satisfação sexual se mostra distorcida. se dá através do sintoma? 

A sexualidade ‘pervertida’ não seria senão uma sexualidade infantil cindida (dividida) em impulsos separados.

Por que os impulsos sexuais (desejos, investimentos e satisfações em relação aos objetos) só surgiriam na puberdade? Será que a sexualidade só estaria relacionada aos órgãos genitais? Claro que não, a sexualidade inicia desde muito cedo na vida de cada um de nós. Abordar a sexualidade na infância é abordar os impulsos e investimentos sexuais a objetos, sem que haja ainda o ato sexual propriamente dito ou satisfação sexual calcada nos genitais. Na infância esses impulsos e investimentos aparecem de uma maneira caótica, por isso perversa.  

"As crianças possuem tudo aquilo que se pode descrever como vida sexual, a justeza de nossas observações e a explicação para o fato de encontrarmos tantas afinidades entre a conduta das crianças e aquilo que mais tarde é condenado como perversão." S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917)

A mãe satisfaz as necessidades básicas do bebê, o mantendo alimentado e  quentinho. Os impulsos sexuais surgem junto a essas primeiras satisfações. O bebê por sua vez, mesmo sem fome, em outro momento, após esta primeira satisfação, reinvestirá novamente nesse objeto (seio materno), a fim de reencontrar aquele primeiro prazer.  

As primeiras satisfações que ocorrem na vida do bebê, advém da satisfação de suas necessidades, e um "além" proporcionado pelo seio materno. A satisfação de prazer surge da  excitação própria da boca do bebê em contato com o seio.. Surgindo então a boca como uma zona erógena. O seio é um objeto interno ou externo do bebê?

"Se um bebê pudesse falar, ele indubitavelmente afirmaria que o ato de sugar o seio materno é de longe o ato mais importante de sua vida. E nisto o bebê não se engana muito, pois nesse único ato está satisfazendo de uma só vez as duas grandes necessidades vitais. Por isso, não nos surpreenderemos ao saber, por meio da psicanálise, quanta importância psíquica conserva esse ato durante toda a vida. Sugar ao seio materno é o ponto de partida de toda a vida sexual, o protótipo inigualável de toda satisfação sexual ulterior, ao qual a fantasia retorna muitíssimas vezes, em épocas de necessidade. Esse sugar importa em fazer o seio materno o primeiro objeto do instinto sexual." S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917)

Em determinado momento, do prazer encontrado no contato boca/seio materno é deslocado ao prazer encontrado no investimento do próprio corpo do bebê(polegar ou sua própria lingua).  Quando o bebê volta essa busca de prazer  a seu próprio corpo, descobre que pode obter prazer em si mesmo sem consentimento do mundo externo. Esse momento é denominado Auto erotismo. 

Duas características decisivas da sexualidade infantil: Ela surge ligada à satisfação das principais necessidades orgânicas e se comporta de maneira auto-erótica. 

Em que momento o mundo externo retorna a vida do bebê como fonte de investimento e obtenção de prazer? Ou o bebê se "nutre" de duas fontes, uma que advém do seio ou substituto e uma segunda fonte do auto erotismo? 



Não interessa se a satisfação encontrada advém de uma maneira externa ou interna. Todo prazer é sentido como advindo de dentro e o desprazer advindo de fora.  Trata-se de uma satisfação no corpo e que se encerra ali, no próprio corpo. Não se trata de um corpo considerado um todo, sendo tomado como objeto de investimento libidinal, mas partes de um corpo vivido como fragmentado, sem unidade.

Quando o bebê urina ou evacua também obtém prazer em seu corpo (sentido nos órgãos excretórios). A cada dia, o bebê consegue obter mais prazer neste ato, através das excitações das zonas erógenas da membrana mucosa. Entretanto esta sensação prazerosa advinda de dentro do próprio corpo se depara com o imperativo do controle educacional dos esfincteres advindo do mundo externo(mãe ou educadores): A criança não pode mais obter prazer a partir de suas funções excretórias, mesmo assim, em relação as fezes, a criança dá  imenso valor a seu produto: por ser uma fonte de prazer no corpo e por ser um presente produzido por ela, que presenteia ou não à mãe. 
  
Sobre o controle esfincteriano adquirido pelas crianças, Freud diz: "Então, pela primeira vez, a criança é obrigada a trocar o prazer pela respeitabilidade social. No início, sua atitude para com suas excreções é muito diferente. Não sente repugnância por suas fezes, valoriza-as como parte de seu próprio corpo, da qual não se separa facilmente, e usa-as como seu primeiro ‘presente’ com que distingue as pessoas a quem preza de modo especial. Mesmo depois de a educação ter atingido seu objetivo de tornar essas tendências incompatíveis com a criança, esta continua a atribuir elevado valor às fezes, considerando-as ‘presentes’ e ‘dinheiro’. Por outro lado, parece considerar com especial orgulho a proeza de urinar." S. Freud. Conferência XX -  A vida sexual dos seres  humanos. (1916-1917)

A criança pequena se satisfaz  através de investimentos num  objeto externo, mas também na satisfação obtida em suas próprias zonas erógenas, as quais as genitais estão incluídas.  A masturbação inicia muito cedo na vida da criança e é uma forma também de satisfação no próprio órgão. Freud não delimita a questão da masturbação a satisfação do órgão, mas a deixa em aberto para novas indagações.

O pênis para criança é fonte de interesse, prazer e frustrações. Até determinado momento na constituição da criança, todos os seres tem pênis, até que ela descobre que nem todos  seres o tem: para o menino isso pode ser uma ameaça a esse objeto que é fonte de prazer, no caso da menina, não ter pênis é uma constatação. Com essas idas e vindas sobre a sexualidade e a diferença anatômica entre os sexos e as identificações constrói-se aquilo que é masculino e aquilo que é feminino, Entretanto essas descobertas sobre a diferença entre os sexos não é sem perdas, frustrações, privações, e a castração como pano de fundo. Enfim o Complexo de Édipo. 

A sexualidade também é fonte de curiosidade e investigação sobre a origem da vida para criança. As investigações sobre a sexualidade iniciam cedo: questionamentos sobre a origem dos bebês(da onde nascem os bebês?). As crianças percebem que o pai tem algo haver com seu nascimento, mas não conseguem relacionar que o mesmo órgão que se urina, se faz bebê e com isso a criança constrói hipóteses e conclusões sobre a sua origem e sua história de vida. 

A infância não é tão inocente, pura e isenta de qualquer satisfação de prazer, muito pelo contrário. A criança tem que lidar com uma intensidade de excitações, desejos, investimento em objetos. A sexualidade é também para criança uma fonte de  questionamentos. Ninguém sai ileso da infância, até porque a criança constrói essa "fábula sobre a sexualidade", calcada em imagens, em fala dos pais por vezes depreciativas, em não ditos, em segredos, em imperativos.  E essa construção da criança repercute na vida da pessoa em todos os aspectos. 
O sexual não pode ser visto somente pelos genitais, ou visando a reprodução. A sexualidade de cada um é diversificada e com suas excentricidades. É impossível pensar a sexualidade sem a marca do seu tempo, desarticulada de conceitos morais. Entretanto, há sempre diferença entre o que as pessoas falam de sua sexualidade, daquilo que as pessoas fazem no sexo. 




Ao me debruçar sobre este texto, fiquei pensando na sexualidade na contemporaneidade. Antes o sexo era algo encoberto, marcado de segredos. Que não deixa de ter a sua graça Atualmente a sensação que tenho é de excesso: de informação, de explicites do sexual, do "pode tudo", inclusive pode não querer fazer sexo, são os assexuados. 

Quais marcas no sujeito, o nosso tempo deixará?   O que transmitiremos as próximas gerações? 


Paula Adriana
Praticante de psicanálise

email: paulaadriana.couto@gmail.com