terça-feira, 28 de outubro de 2014

O Recalque (1915)








Verdrängung: Recalque 


A palavra recalque significa “rebaixamento de terra ou paredes” (p. 358). O radical calcar é conceituado como “calcar a terra, o terreno= pressionar-pisar-apertar” (p. 358), podendo também ser utilizado como “oprimir, vexar, desprazer” (HANS, 1996, p. 358). 
Roudinesco e Plon (1998) acrescentam que o termo refere-se “ao ato de fazer recuar ou de rechaçar alguém ou alguma coisa” (p. 647). Os mesmos autores afirmam que também pode ser utilizado como sinônimo de recusa ao acesso a um país ou lugar específico. 



De uso quase que exclusivo da psicanálise,o recalque é  definido como sendo o movimento que o aparelho psíquico promove para despejar da consciência as representações que podem gerar desprazer. Além disso, o aparelho psíquico disponibiliza energia para executar a tarefa de manter o conteúdo que foi despejado afastado da consciência (HANS, 1996; Kusnetzoff, 1982). O mecanismo do recalque não dispõe de força suficiente para erradicar as fontes pulsionais do aparelho psíquico, mas para empurrá-las de volta, “desalojar do centro da cena” (p. 363), mantendo-as fora da consciência, no inconsciente. O recalque mantém-se existente e necessário, pois as fontes pulsionais, uma vez recalcadas, movimentam-se constantemente buscando um caminho para acessar a consciência e o mundo externo, onde irá encontrar a satisfação. A função do recalque é gerar contra-investimentos para manter o material recalcado no inconsciente (HANS 1996). 

TEXTO: REPRESSÃO (1915)

A meta de toda pulsão é ser satisfeita,cujo objetivo é a obtenção do prazer num órgão. O aparelho psíquico frente a qualquer aumento de tensão oriundo da sensação de  desprazer trabalha no sentido de baixar a tensão ao nível mais baixo. O recalque é outro destino que passa um impulso pulsional, além da reversão ao seu oposto, o retorno em direção ao próprio eu do indivíduo e a sublimação.  


O recalque (Verdrangung), compreende o movimento de tornar inoperante determinado impulso pulsional em alguma instância psíquica. Este impulso é prazeroso em alguma instância, mas causa desprazer em outra. 

"Um dos destinos que uma pulsão pode sofrer é a tentativa de  tornar-lo inoperante. O impulso pulsional então passa para o estado de recalque (Verdrangung)" Freud. S. A Repressão  (1915)

O indivíduo frente a qualquer estímulo externo, e a possibilidade de obter desprazer ao invés de prazer, tem como ação: fugir. Em contrapartida, frente a um estímulo interno (impulso pulsional) que cause aumento de tensão, não existe a possibilidade de fuga, pois não há como fugir de si próprio. O destino neste caso é tornar o impulso pulsional inoperante. Frente a este tipo de impulso há duas possibilidades: 1. recalque e o 2. julgamento/condenação. 

Qual tipo de impulso pulsional  que  é recalcado, já que existem outros destinos? 

O impulso pulsional que é recalcado tem a particularidade de proporcionar prazer em alguma instância(pcs/cs), mas que transforma-se em desprazer. A pulsão é uma pressão constante que tem como finalidade a satisfação, obtenção de prazer num determinado órgão por algum objeto mesmo que parcial.  Pelo visto o impulso pulsional que é recalcado preenche pelo menos num nível o quesito de proporcionar prazer. 

Como ocorre a transformação do prazer da satisfação  em desprazer?

Freud utiliza-se de dois exemplos para demonstrar a transformação do prazer em desprazer: dor e fome. Frente a estes estímulos há o aumento de tensão. Apesar de cumprirem certas condições não dizem respeito a pulsão/recalque:

Tanto a dor como a fome  advém de maneira imperativa, Já a pulsão é uma força constante
Ambos causam desprazer desde o primeiro momento, e cessam quando são satisfeitos por algum objeto. Esses dois exemplos de estímulos (dor e fome) parecem  não ser exemplos de representantes pulsionais. Freud então, se dirige a clínica psicanalítica para abordar a ação do recalque.

O recalque é um mecanismo defensivo que  não está presente desde o início no indivíduo. Ele somente surgirá quando houver uma cisão entre a atividade psíquica consciente e inconsciente. A essência do recalque é  simplesmente de afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância. 

Antes do recalque propriamente dito, há um primeiro recalque, onde os representantes psíquicos tem acesso negado no consciente. Neste primeiro momento ocorre  a fixação do representante da pulsão no inconsciente, não há alteração nos derivados psíquicos. O recalque propriamente é uma pressão posterior, onde aqueles primeiros derivados psíquicos do representante recalcado são afetados, assim como, todos os elementos mesmo que, originaram-se em outra parte.


O que ocorre,  que todos os elementos que tenham determinada conexão se juntem e sejam afetados pelo recalque?

Justamente a ligação associativa entre os elementos e o  recalque primário. Todos esses elementos da cadeia associativa ficarão fixados no inconsciente. Essa ideia é muito interessante, pois fala da importância do primeiro recalque, das marcas da primeira infância, assim como, do meu ponto de vista, diz da primazia da instância inconsciente sob as outras instâncias psíquicas, ou no mínimo há cooperação entre as instâncias. E a pulsão no limite entre somático e psíquico e relacionado a linguagem. 

Sobre a ação do recalque na neurose, Freud diz:

"Sob a influência do estudo das psiconeuroses, que coloca diante de nós os importantes efeitos da repressão, inclinamo-nos a supervalorizar sua dimensão psicológica e a esquecer,demasiado depressa, o fato de que a repressão não impede que o representante instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações. Na verdade, a repressão só interfere na relação do representante instintual com um único sistema psíquico, a saber, o do consciente." Freud. S. A Repressão  (1915)

O recalque é um  também um modo de manter a tensão no aparelho psíquico a baixo. Por outro lado, esse representante pulsional recalcado no inconsciente, se mantém vivo se prolifera, se desenvolve e sem a via da fala para expressar ou sem qualquer interferência. Ele é "nutrido" por novos representantes. 

Diz Freud: 
"(...) Ele (representante pulsional) prolifera no escuro, por assim dizer, e assume formas extremas de expressão, que uma vez traduzidas e apresentadas ao neurótico irão não só lhe parecer estranhas mas também assustá-lo, mostrando-lhe o quadro de uma extraordinária e perigosa força da pulsão. Essa força falaz do instinto resulta de um desenvolvimento desinibido da fantasia e do represamento ocasionado pela satisfação frustrada."Freud. S. A Repressão  (1915)

No recalque não são  todos os elementos que são retirados do consciente via inconsciente. A ideia que a partir do primeiro recalque todos os elementos que fazem parte da mesma associação são recalcados secundariamente não é verdadeira. Por que? Freud responde:

"Se esses derivados se tornarem suficientemente afastados do representante reprimido - quer devido à adoção de distorções, quer por causa do grande número de elos intermediários inseridos -, eles terão livre acesso ao consciente. Tudo se passa como se a resistência do consciente contra eles constituísse uma função da distância existente entre eles e aquilo que foi originalmente reprimido." Freud. S. A Repressão  (1915)

Numa sessão de psicanálise, a partir da  associação livre do analisante, quando não há intenção ou crítica na fala, esses conteúdos advém, e traduzem conscientemente os representantes pulsionais e  seus derivados remotos e distorções. Essas associações se movimentam até o ponto, onde o analisante encontre um pensamento que tenha relação com o  recalcado, Frente a proximidade do recalcado, uma nova  tentativa de recalque advirá.  Nos sintomas, o recalcado também advém a consciência, neste mesmo movimento.  O sintoma é um "derivado do recalcado", constituído de linguagem, pois é acessível a medida que o sujeito associa livremente.  

O recalque atua de forma particular, em relação ao representante pulsional. Entretanto o recalque não é o único caminho a este "estilo" de representante. A idealização é um exemplo disso.  

A idealização não  faz parte do conteúdo que foi recalcado, mas é constituída pelos representantes pulsionais originais que não sofreram ação do recalque. Esses representantes pulsionais se  mantiveram conscientes, isolados e apresentaram  uma forma bastante distorcida e que se relacionam aos objetos. Sendo assim, um representante pulsional original pode ser dividido em duas partes: uma que sofre recalque e outra parte  passa pela idealização (narcisismo).

O uso dos chistes também é outra maneira dos representantes pulsionais tornarem-se acessíveis ao invés de repudiados, Só que não pela via da distorção, mas sim pelo desprazer/prazer.  O recalque, neste caso é removido temporariamente, reinstalando-se imediatamente. 

Sobre as características do recalque: 

Seu funcionamento é individual, extremamente móbil, não ocorre de uma única vez e  seus resultados não são  permanentes.

Essas características me faz pensar que o representante pulsional passa por pressão dupla: do inconsciente para se tornar acessível ao consciente e do consciente para mante-lo inconsciente?  Qual energia mantém o recalque ou os representantes pulsionais? 

Para responder a essa questão, Freud diz:

"O recalque exige um dispêndio persistente de força, e se esta viesse a cessar, o êxito da repressão correria perigo, tornando necessário um novo ato de repressão. Podemos supor que o reprimido exerce uma pressão contínua em direção ao consciente, de forma que essa pressão pode ser equilibrada por uma contrapressão incessante. Assim, a manutenção de uma repressão acarreta ininterrupto dispêndio de força, ao passo que sua eliminação, encarada de um ponto de vista econômico, resulta numa poupança.Incidentalmente, a mobilidade da repressão também encontra expressão nas características psíquicas do estado do sono, o único a tornar possível a formação de sonhos. Com o retorno à vida de vigília, as catexias repressivas absorvidas são mais uma vez expulsas." Freud. S. A Repressão  (1915)

Sem prejuízo ao recalque, os impulsos pulsionais podem estar ativos ou inativos. Um determinado impulso pode ser fortemente investido ou não. Quanto mais investido, mais ativo será e quanto menos investido, menos ativo. Quanto mais ativo psiquicamente este impulso, mais se movimentará entre as instâncias, pois está "atividade" estimulará todos os processos à penetração ao consciente por vias indiretas. Da mesma maneira, os derivados não recalcados, na medida que são investidos, também se movimentam. 

O combustível que proporciona o movimento dos impulsos pulsionais e da própria mobilidade entre as instâncias, é o  próprio investimento nestes representantes pulsionais e conflito entre as instâncias: quanto mais ativo um representante, mais intensidade será a tentativa para recalcá-lo e o contrário também, quanto menos investido, menos ativo, mais disfarçado, consequentemente não precisará do recalque para se manter inoperante. Enfim é justamente a atividade que necessita da ação do recalque.   

Freud a partir de sua observação na clínica, faz uma separação entre o representante pulsional: parcela ideacional(ideia, imago) e o afeto nele envolvido. E diz que este último não é recalcado. E o que ocorrem com os afetos que estão envolvidos a um representante (ideia)?.


O objetivo de tornar um representante pulsional recalcado é torná-lo inoperante, graças a ação do  recalque não há desprazer. O que acontece é que nem sempre o recalque é totalmente eficaz, principalmente porque o afeto não é recalcado, Sendo assim, uma ideia que representa uma pulsão pode ter três destinos: Ser inteiramente suprimido, sem qualquer vestígio dele. Apareça como um afeto, com certa nuance, ou transformado em angústia. A angústia não causa desprazer? Se a ação do recalque não conseguir impedir que surja  desprazer ou angústia, O recalque falhou,

A partir da falha no recalque surgirão: sintomas e as formações substitutas. Que serão constituídos justamente pela parcela ideacional.  

Freud levanta algumas questões sobre as formações substitutas e os sintomas: "Qual é o mecanismo através do qual esse substituto é formado? Ou será que devemos, também aqui, distinguir vários mecanismos? Além disso, sabemos que a repressão deixa sintomas em seu rastro. Podemos então supor que a formação de substitutos e a formação de sintomas coincidem, e, admitindo que isso aconteça de um modo geral, será o mecanismo formador de sintomas o mesmo que o da repressão?"Freud. S. A Repressão  (1915)

As formações substitutas não são constituídos pela ação do recalque. Existem diversos mecanismos que constituem essas formações. Tanto nas formações substitutas como no recalque há retirada do investimento da libido. Já os sintomas, seriam o retorno do recalcado, o sintoma existe porque o recalque falha. Será? 

Freud exemplifica a ação do recalque e das formações substitutas/sintomas a partir de um caso de histeria de angústia, numa fobia de animais.

Neste caso  há ao mesmo tempo uma atitude libidinal em relação ao pai e um medo em relação a ele, portanto um conflito psíquico. O impulso pulsional é recalcado.  Esse impulso desaparece da consciência. O pai não aparece mais como um objeto da libido. Substituindo o pai, encontramos num lugar correspondente um animal que se presta, de modo mais ou menos adequado, a ser um objeto de angustia.  

PAI                                     ANIMAL
OBJETO DA LIBIDO       OBJETO DE ANGÚSTIA


Há um deslocamento do pai ao animal por meio de uma cadeia de conexões - parcela ideacional do representante pulsional. (formação do substituto)

A parcela quantitativa não desapareceu, mas foi transformada em angústia. 

"(...)resultado é o medo de um lobo, em vez de uma exigência, de amor feita aos pais. As categorias empregadas aqui não bastam, naturalmente, para explicar de forma adequada nem mesmo o caso mais simples de psiconeurose: há sempre outras considerações a levar em conta. Deve-se descrever uma repressão, tal como a que ocorre numa fobia animal, como sendo radicalmente destituída de êxito. Ela apenas remove e substitui a idéia, falhando inteiramente em poupar o desprazer. É também por esse motivo que o trabalho da neurose não cessa. Prossegue até uma segunda fase, a fim de atingir seu mais importante e imediato propósito. O que se segue é uma tentativa de fuga - a formação da fobia propriamente dita, de um grande número de evitaçõesdestinadas a impedir a liberação da ansiedade. Uma pesquisa mais especializada permite-nos compreender o mecanismo pelo qual a fobia alcança sua finalidade." Freud. S. A Repressão  (1915)

Na histeria de conversão o recalque se dá de maneira distinta da histeria de angústia. Há o desaparecimento da quota de afeto na histeria de conversão, a partir do mecanismo denominado por Charcot:  ‘la belle indifférence des hystériques‘.



A "‘la belle indifférence des hystériques" é uma expressão francesa cunhada por Pierre Janet para caracterizar a falta de preocupação exibida por pacientes histéricos diante de uma grave disfunção corporal. O paciente aparenta calma exteriormente mesmo que o sintoma produzido seja incapacitante.











A parcela ideacional do representante pulsional é totalmente retirada da consciência; como um substituto e como um sintoma. No corpo existe  uma inervação superforte (somática): sensorial ou motora na forma de excitação ou inibição. Essa inervação superforte é parte do próprio representante pulsional recalcado, que se tornou assim pelo processo de condensação. Todo investimento é centralizado num mesmo local.   

"Evidentemente, essas observações não trazem à luz o mecanismo completo de uma histeria de conversão; o fator regressão, em especial, a ser considerado em outra conexão, também tem de ser levado em conta. Na medida em que a repressão na histeria [de conversão] só se torna possível pela extensa formação de substitutos, ela pode ser julgada inteiramente destituída de êxito; contudo, ao lidar com a quota de afeto - a verdadeira tarefa do recalque -, ela geralmente significa um êxito total." Freud. S. A Repressão  (1915)

O recalque na  histeria se dá de duas maneiras: em duas fases no caso da histeria de angústia, onde a parcela ideacional se desloca na cadeia associativa e a parcela afetiva é transformada, constituindo a fobia. Na histeria de conversão, ocorre o desaparecimento da quota de afeto, a partir do mecanismo: a bela indiferença histérica e a parcela ideacional  é totalmente retirada  como um substituto e como um sintoma. O recalque é completado pela formação do sintoma (super-inervação em alguma parte do corpo) através do processo de condensação.

Como ocorre o recalque na neurose obsessiva?
A princípio há um conflito entre as instâncias: impulso hostil contra alguém que é amado. Uma tendência sádica foi substituída por uma afetiva.


Na neurose obsessiva num primeiro momento o recalque é cercado de exito, a partir da rejeição do conteúdo ideacional, fazendo com que o afeto desapareça. Disto advém uma formação substitutiva, sob a forma de maior consciência. Isso seria uma forma de supereu? Freud até este momento não havia construído o conceito de supereu, mas talvez seja uma tentativa de construção. Essa maior consciência pode existir  justamente pela  ambivalência em que o impulso sádico ao ser recalcado é introduzido. 


No entanto, o recalque que tinha tido exito não se firma e fracassa, tornando-se mais acentuado. A ambivalência que havia permitido que o recalque ocorresse através da formação de reação é justamente o ponto que consegue retornar. 
- Parcela afetiva  retorna, em sua forma transformada, como: angustia social, angustia moral e autocensura ilimitadas;

- Parcela ideacional: a ideia rejeitada a principio, é trocada por um substituto por deslocamento para algo menor, indiferente.

"O fracasso na repressão do fator quantitativo afetivo põe em jogo o mesmo mecanismo de fuga, por meio de evitação e proibições, tal como vimos em funcionamento na formação de fobias histéricas. A rejeição da idéia oriunda do consciente é, contudo, obstinadamente mantida, porque provoca a abstenção oriunda da ação, um aprisionamento motor do impulso. Assim, na neurose obsessiva, o trabalho da repressão se prolonga numa luta estéril e interminável." Freud. S. A Repressão  (1915)

Finalmente, em Freud o recalcado constitui o componente central do inconsciente. "O recalcado se sintomatiza", diz o fundador da psicanálise. Ou seja, pelo recalque, os processos inconscientes só se tornam conscientes através de seus derivados - os sonhos ou os sintomas neuróticos


O próximo texto a ser estudado será: O sentido dos sintomas. Que talvez me dê a possibilidade de articular pulsão/recalque/inconsciente. Só depois tentarei articular o amor/sexualidade/desejo em Freud.  

 Vamos lá!


Adriana


Referências:

Hanns, L. ALberto. Obras psicológicas de Sigmund Freud. Volume I. 1996.



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